quinta-feira, 16 de junho de 2011

A Moça Que Era Brisa

© Nekranea (DeviantART)
Quando eu desencarnei
Não sei dizer bem ao certo
Se aquele canto lá onde cheguei
Era o céu, ou lugar mais perto
Só sei que ao chegar,
Me mandaram esperar
Sentada, paciente
Até vir um atendente
Pra comigo conversar

Entrei numa sala e sentei à mesa
E qual não foi a minha surpresa
Ao saber que tinha que voltar
Com uma tarefa a desempenhar.
Pra pagar a minha estadia
Pro mundo dos vivos iria voltar
Apenas um vento eu seria
Mas era importante o que ia soprar

Meu trabalho era por caridade
Procurar por quem sofreu demais
E fazer esquecer uma parte
Soprar algumas memórias pra trás
Minha tarefa era por piedade
Vetar das memórias alguns sofrimentos
Economizar das pessoas certos tormentos
Pra viverem, ou morrerem com dignidade

E o tempo passou,
E me apeguei à minha função
Deixava leve o meu coração
Ser aquela que com o vento levava
O choro da mãe que embalava
O filho pequeno sem pulsação
Aquela que com o tempo fazia entender
Que mesmo sofrendo é preciso viver
Pra poder ajudar os que ficarão

Até quando acabou o meu tempo
E eu pude partir afinal,
Me disseram, trabalhei a contento
Mas eu me sentia um pouco mal
Pois de todo sofrer que soprei,
Junto também ia um pouco do meu
E agora, eu dizia, se eu chorar
Quem fica pro meu pranto soprar?

Um abraço de luz eu ganhei
“Não vais mais chorar, pequenina
Pois até o pranto sem fim
Nos meus braços um dia termina”
E assim para a luz eu segui
Pra encontrar com o nunca e o sempre
Me juntei ao princípio de tudo
Estive na criação, em seu ventre
E todo o sofrer ficou mudo
E toda a vida voltou
Nesse momento mais uma alma nasceu,
No exato momento que meu vento soprou.

Pesos e Medidas

© Jonas Kussama
No caminho para casa, às vezes me assalta uma preocupação que se mostra mais eficiente que a maioria dos bandidos da cidade. Me assalta um medo meio aleijado, um tanto manco, que me persegue persistente e irritante, apesar da dificuldade em seu claudicante andar. Algo que nunca me alcança, mas tampouco me deixa em paz. Consigo ouvi-lo por cima dos sons do trânsito e do conversar das pessoas. É o som da areia caindo, de minutos indo embora e não voltando mais. Tento em vão segurá-los, impedir sua partida até o momento em que desisto revoltado. Nessa hora só desejo que vão com Deus, e o diabo que os carregue...
A poder de música, consigo negociar alguns sorrisos internos e alguma satisfação um tanto diluída, mas ainda assim genuína. Procuro exercitar minha capacidade de alternar importâncias, e penso no cara que desmanchou o noivado perto do casamento. A noiva, tomada de assalto pelo ódio movido a essas paixões irracionais tão comuns em nosso tempo. Traçou um plano junto à madrasta e ao padrasto esse último um estereótipo ambulante, o típico policial-corrupto-carioca (tudo junto, por serem conceitos cada vez mais indissociáveis, infelizmente) a morte do rapaz. Ele escapou com vida, mas não antes de tornar-se um alvo móvel, e ganhar alguns buracos de bala pelo corpo. Há também o fato do rapaz ter sido mantido em cativeiro e apanhado durante sete horas. E de conseguir escapar, fugir, se jogar em um valão e fingir-se de morto.

Eis que de repente minha volta pra casa adquire novos ares, a música consegue animar meu espírito mais e mais, e até as plataformas de petróleo na baía adquirem os ares poéticos de uma singela letra de bossa nova. Tudo é uma questão de perspecitva, não é mesmo?


Publicado no Recanto das Letras em 23/09/2008

À prova de quase tudo

© Chris Boyd
O mundo é o mesmo, não mudou em nada.
Mas ainda assim estamos aqui, frente a frente
E se a perfeição do destino nos foi roubada,
Se ambos tivemos que nos virar, de repente
E aprender, bem ou mal a assimilar as porradas
Que os bandidos vieram e deram na gente...
Doeu, mas aprendemos. Sobrevivemos.

Nos tornamos capazes de pôr de lado esperança,
E até um pouco da fé nesse mundo selvagem
Mas soubemos proteger o nosso lado criança
Pra não tê-lo estragado, só de sacanagem
Por essa gente tão feia que sempre nos alcança.
Desiludiu, mas aprendemos. Sobrevivemos.

Encontramos falsos amores, casos e promessas
Fomos passados pra trás, subtraídos em valores
Repetimos sem conta: “não me venha com essa”
E descobrimos remédios para aliviar essas dores
E seguimos, pois ainda assim tínhamos pressa.
Enfrentamos, e aprendemos. Sobrevivemos.

Cada um seguiu para um lado, que mais conviesse.
Um tornou-se emissor de emoções, uma fonte
Outro, guerreiro defensor da razão, como prece.
Nos vimos no mesmo campo, no mesmo front
Em lados opostos, mas não inimigos, ao que parece
Lutamos (muito) para aprender. Sobrevivemos.

Hoje encontramos descanso nas cores de uma flor
Nos pequenos e doces prazeres dos tempos de paz
Almas cansadas, habituadas a todo tipo de dor
Recusamos os protocolos, e os códigos, não mais.
Nos achamos, nos reconhecemos em meio ao tremor,
E com o mundo girando, deixamos regras pra trás

Não jogamos, porque o jogo já não há
Não comparamos, pois a vida passa sozinha
Entendemos que há muito que esperar,
Mas que a vontade que de nós se avizinha
É o anseio de viver sem se preocupar
Se o que se aproxima é flor, ou erva daninha.
Sobrevivemos, à flor, e ao veneno.
Eu, Você, sobreviventes ao extremo.