Estive no último final de semana em um local especial. Trata-se de uma ecovila, um interessante experimento que vem ganhando mais notoriedade nos últimos tempos. Talvez não pelas razões mais corretas, mas isso é assunto que tratarei mais à frente. Ainda estamos no início da história. O fato é que antes de ir eu tinha uma ideia completamente equivocada de várias coisas, e estar naquele ambiente me ajudou a alinhar de forma muito interessante vários pensamentos, desfazer alguns conceitos, e construir outros.
Fomos eu e Clarice à ecovila por convite de uma colega de trabalho dela, que já tinha participado de um projeto no local em um período passado. A moça retornaria ao local para colher mais informações sobre um projeto novo que possui, levando o namorado, que é engenheiro e interessado em processos alternativos de construção. Sabendo de nossa ideia de construir um telhado verde em casa, em conversas no trabalho as duas imaginaram um plano para viabilizar a construção com baixo custo, já que tínhamos o interesse em ter essa inovação em nossa casa e ela conhecia pessoas que podiam usar nossa futura construção como laboratório para algum tipo de curso ou workshop. Teríamos um sistema de troca, o que minimizaria os custos do projeto. Com esse plano iniciado, surgiu a oportunidade de irmos até o local que tem alguns telhados verdes implantados para conhecer de perto a técnica e pesquisar outros detalhes para nosso projeto.
Confesso que a primeira imagem que o conceito de ecovila sugere é a de uma aldeia de bichos-grilos. É muito fácil para o habitante urbano ter essa impressão. E talvez essa tenha sido a mais prazerosa das minhas descobertas no passeio: eu não podia estar tão certo, e ao mesmo tempo, não podia estar tão errado. A surpresa foi das maiores. Após uma viagem de pouco mais de 1 hora até o município de Magé, tomamos o caminho do distrito rural onde se encontra a propriedade. A região me fez sentir uma familiaridade impressionante. Situada no pé da serra dos órgãos, após um sacolejante trecho final de viagem numa estrada de terra coberta com pedras, o sítio onde a ecovila funciona é literalmente no pé da montanha. Para um serrano como eu, ter à volta a visão daqueles paredões de pedra concorrendo com o azul do céu proporciona uma sensação de proteção e acolhimento. É como voltar pra casa. Fomos chegando, estacionando e descobri que a visita daquele dia era direcionada a um grupo limitado de pessoas, e enquanto fazíamos um reconhecimento preliminar no local, aguardávamos as pessoas que ainda não tinham chegado para completar o grupo. Um detalhe que não me passou despercebido foi o quanto os pretensos “bichos-grilos” chegavam bem motorizados em seus Chevrolets Captivas, Toyotas Hilux e similares.
À medida que o povo foi chegando para fechar o grupo, havia um café da manhã frugal, porém carinhoso esperando por todos. Descobri que durante muitos anos o lugar tinha funcionado como uma pousada, hoje não mais. O rapaz que funcionava como cicerone da ecovila era um agregado funcional que conhecia o projeto e já tinha morado lá em outra temporada. Participou da construção de algumas experiências de sustentabilidade e ficou encarregado de fazer um pequeno tour de apresentação do local. Através dele fiquei sabendo a história do local. Nascido da vontade de um chefe de cozinha alemão e sua esposa argentina, que desejavam morar “no meio do mato”, o que hoje era uma ecovila começou como um sítio que se tornou uma pousada. Enquanto o tour nos apresentava o bucólico, embora um tanto caótico terreno da propriedade, víamos o simpaticíssimo gringo entre canteiros e hortas, às voltas com o que viria a se tornar o almoço de mais tarde. Eu e Cla nos divertimos com as fotos que pudemos tirar, enquanto percebíamos o grupo heterogêneo de pessoas que nos acompanhava. Uns com a típica postura estereotipada de bichos-grilos de boutique, outros, parecendo não tão à vontade, e preocupados com a presença ou não de carne no almoço, enquanto outros lutavam com crianças choronas e que pediam atenção toda vez que os pais tentavam ouvir o que o guia explicava.
O pequeno incômodo que essas observações acumuladas foram me causando estava prestes a ser eliminado. Após o tour tivemos a oportunidade de cair na água fria da cachoeira, que formava um poço numa das laterais da propriedade. Serrano como sou, cachoeira tem em mim o efeito que o mar tem no surfista. A água fria da montanha limpa energias negativas, clareia o pensamento, acalma. Já ajudou até a cicatrizar ferimento. Bastou apenas o banho de cachoeira para esquecer das incoerências das pessoas, para abstrair as crianças mal-comportadas e tornar minha atenção mais voltada para os detalhes.
À medida que o tour prosseguiu, pude ver os pontos altos e baixos do empreendimento. Consegui perceber o quanto algumas ideias eram boas, excelentes até, mas careciam de um simples toque de refinamento, de acabamento. Pude perceber o quanto a ideia de sustentabilidade ainda é difícil de vender e de convencer por aqui por não ter uma capacidade de se apresentar como algo que, por motivos de sobrevivência, deve ser mainstream e não um nicho, simplesmente. A cabeça funcionando a plena capacidade. E quando digo plena capacidade, quero dizer nem no excesso estressante da ansiedade selvagem urbana, nem na letargia autoimposta do hippie estereotipado.
O tour foi chegando ao fim, com a apresentação de todas as iniciativas do local, que me surpreenderam positivamente pela coragem em sua implantação, pela correção dos ideais de preservação do meio ambiente. E que também me surpreenderam negativamente por saber que depois de 25 anos de projeto, tendo recebido visitantes de vários países com tanta troca de experiências e riqueza de ensinamentos, havia tão pouco de progresso perceptível no projeto, tão pouco de procura de integração dessa consciência ambiental com o mundo lá fora e tão pouca sensação de que havia um trabalho de levar o pensamento da sustentabilidade para influenciar a esfera pública em um país ainda tão atrasado nesse sentido quanto o nosso. O almoço vegetariano (para desespero do rapaz carnívoro que mencionei anteriormente) foi agradabilíssimo. Na qualidade de primatas onívoros, para mim e pra Clarice tudo foi festa. O mais surpreendente foi que a pessoa mais incomodada que vimos na grande mesa do almoço foi uma moça vegana, que fazia questão de perguntar tudo que continha em cada prato preparado com tanto carinho pelo alemão. A impressão era que ela esperava que algum bife escondido iria saltar em cima dela a qualquer momento de baixo de uma rodela de batata-doce. Enquanto ela catava a comida com uma cara que variava entre o nojinho e a desconfiança, eu me deliciava com uma lasanha de berinjela. Também apreciei muito uma salada feita com folhas de beldroega, que nunca tinha comido e que descobri com prazer ser uma farta fonte de ômega3. E com mais prazer ainda ao saber que já a possuíamos crescendo em nosso quintal há tempos sem sabermos que era comestível. Aproveitei o movimento pós-almoço para conversar com o alemão, simpaticíssimo, que gentilmente me prometeu mudas de taioba ao saber que eu queria plantar essa verdura em casa.
Após os passeios de digestão do almoço, o povo todo se reuniu num dos locais de convivência da propriedade para fazer uma roda. Iriam-se fazer as apresentações de todo mundo e a troca de experiências que cada um procurava ali. Perderam-se no início alguns preciosos minutos numa forçação de barra, uma coisa ritualística meio imposta, fazendo “ommms” e outras dinâmicas alternativas um tanto constrangedoras, com o intuito de “relaxar” e “conectar-se com a natureza”. Amigos, relaxado e conectado com a natureza todo mundo já estava. Aquele tempo poderia ser muito melhor aproveitado conversando do que fazendo constrangidamente massagem no coleguinha do lado e tentando achar chakras pra liberar energias. A única energia que consegui liberar foi um peido. Por sorte foi silencioso.
Enfim, a roda de conversas propriamente dita foi formada. Cada um falou sobre o que o tinha trazido ali, qual o tipo de informação, experiência ou orientação buscava. Foi finalmente nessa experiência que tive os insights mais interessantes de todo o dia, ainda que os tivesse desde mais cedo. Pela posição onde estava sentado, acabei sendo o primeiro a falar, o que me deu a oportunidade de observar os discursos posteriores em perspectiva ao meu, e de também não ser influenciado pelo que foi dito antes. Falei sobre a degradação do bairro onde moro, que tem sua área verde rapidamente suprimida pela especulação imobiliária desordenada, do nosso interesse no telhado verde, na oportunidade de fazer uma iniciativa desse tipo num ambiente urbano e no desejo que outros telhados fossem surgindo na região onde moro. E passei o “bastão da palavra” adiante. À medida que o bastão rodava, pude aglutinar grande parte das experiências narradas ali, e entender que a sociedade realmente está doente. Percebi o quanto as pessoas, contaminadas por um maniqueísmo pernicioso, tem enxergado o “ir pro mato”, o “sair da cidade”, o “quero fugir desse capitalismo selvagem, desse modo de vida”, como o outro extremo. O cara cansa de trabalhar num banco ou numa multinacional, entra numa crise existencial e resolve “fugir de tudo”. A mulher chora ao contar do quanto sua rotina é exigente, do quanto sua área profissional faz com que ela fique na empresa até tarde quase todos os dias. Sonha em “largar tudo e morar ali”. A necessidade de pertencimento e de identificação com um grupo do ser humano fica clara agora.
Mesmo com um contracheque gordo, um belo carrão na garagem, a pessoa se torna incapaz de lidar emocionalmente com as exigências de sua vida na cidade grande e como a educação emocional é algo rarefeito em nosso contexto social atual, o maniqueísmo se instala. Tudo é extremo. Tudo é oito ou oitenta. Se eu não quero mais ser um capitalista 24 horas por dia 7 dias por semana, vou abandonar tudo isso e virar um hippie no meio do mato. Não existe caminho do meio para essas pessoas. Não há equilíbrio. Não surpreende porque é tão fácil ver pessoas que passam a vida inteira tentando se achar, e no fim das contas não conseguem encontrar, porque acabam esquecendo exatamente o que estavam procurando. Fiquei impressionado com os poucos que conseguiram evoluir um pouco pra além do “estou cansado de tudo isso e vou fugir pro mato”. Me impressionei porque são esses poucos que entenderam que para mudar a realidade da metrópole, para domar a selvageria do capitalismo, para fazer com que as pessoas não sintam tanta vontade de fugir, é necessário empreender. É necessário utilizar as ideias de quem (como o alemão, egresso de uma sociedade muito mais educada nesse sentido) já conhece a consciência da sustentabilidade aplicada, para melhorar a vida aqui no asfalto. É necessário sonhar, e não se limitar a internar-se num ashram e escolher um nome indiano, na tentativa de “se purificar de um mundo que não me entende”. É necessário entender que se vivêssemos em um mundo onde não houvesse superpopulação, nós humanos não seríamos um desequilíbrio ecológico. É necessário entender que ideias precisam ser mudadas, mas que a mudança de ideias passa pelo equilíbrio delas, e que o maniqueísmo é algo trágico, que só serve para atrapalhar nesse sentido.
No fim de tudo, findo o dia, o passeio, as observações, os banhos de rio, as experiências, as conversas e a muda de taioba que levei alegremente pra casa, percebi o quanto o brasileiro ainda precisa mudar em sua mentalidade. O quanto somos irracionais e reativos. O quanto isso nos atrasa, como um todo. Percebi que muito mais que fugir pro mato, precisamos sonhar mais em trazer o mato pra cidade. Sonhar com favelas se transformando em plantações. Sonhar com cidades onde o alimento vem de perto, impactando positivamente na economia. Sonhar com a multiplicação de telhados verdes que ajudam a compensar a temperatura que o excesso de asfalto e concreto elevou com o passar dos anos. Sonhar com cidades arborizadas e bem planejadas, não apenas em suas zonas turísticas. Isso é o mínimo. Ainda temos muito a aprender. Mas o lucro dessa experiência foi ver que por cima de todo o bicho-grilismo e da incapacidade de certas pessoas de olharem além de sua egotrip, já existe gente pensando além, pensando que a sustentabilidade no seu conceito mais amplo não é uma alternativa, mas sim o norte que deveríamos estar mirando.