sábado, 7 de março de 2015

A responsabilidade dos conscientes


Hoje uma colega em um grupo que participo veio me perguntar o que as pessoas que votam com consciência, devem fazer diante do desânimo que dá um cenário de tanta podridão mental, política, eleitoral. Reproduzo aqui o que respondi pra ela:
" É um trabalho de formiga, mas a obrigação de quem vota com consciência é preserverar. É não desistir do civismo. Por pior que esteja a situação, se a gente deixar a peteca cair, se não dermos mais o exemplo, só vamos conseguir acelerar o fim de tudo.
De uns anos pra cá, percebo que com o acesso à internet, e a possibilidade de se informar a respeito do mundo, comparar nossa vida com a de outros países, culturas e sistemas de governo, tem se formado uma minoria (pequena ainda) de pessoas mais críticas, mais cínicas, que não compram tão cegamente certas ideologias pré-formatadas, quanto o pessoal de gerações anteriores.
É claro que ainda tem muita gente que gosta de uma "receita de bolo", de uma "política salvadora dos pobres", de um "abaixo o imperialismo ianque"... mas esses, e nosso (des)governo atual é um belíssimo exemplo disso, se atolam na ineficiência, no totalitarismo e no bate-estaca de ideias ultrapassadas que já foram aplicadas durante todo o século XX (em alguns casos até em países com povo até mais culto e preparado que o nosso) e nem por lá deu certo.
O que precisa é nós que votamos com consciência, continuarmos tendo consciência. E passarmos a tentar, mesmo que aos poucos, contagiar o próximo com essa consciência. Uma vez alguém disse que política de verdade não é esse toma-lá-dá-cá ideológico-partidário, cada um querendo impor seu pensamento à força, (quando não só levar um din-din mesmo e mais nada), que temos aqui no nosso sistema. Política de verdade, de certa forma é o que fazemos nesse grupo. Cidadãos comuns, interessados em (e lutando muito com a prefeitura para conseguir) melhorar sua rua. Melhorando nossas ruas, melhoramos nosso bairro. Melhorando nossos bairros, melhoramos nossa cidade. Melhorando nossas cidades, melhoramos nosso país. Mas tudo começa com nossa rua. Isso é política boa. O resto é babaquice ideológica de quem só quer usar a propaganda da melhoria da rua pra chegar ao poder.
Disso tá cheio por aí, infelizmente... mas estamos aprendendo aos poucos, a colocar esses caras em seus devidos lugares. Eles são nossos empregados, não nós deles." 

terça-feira, 3 de março de 2015

Porque não "trazer a roça" no lugar de "fugir pra roça"?


Estive no último final de semana em um local especial. Trata-se de uma ecovila, um interessante experimento que vem ganhando mais notoriedade nos últimos tempos. Talvez não pelas razões mais corretas, mas isso é assunto que tratarei mais à frente. Ainda estamos no início da história. O fato é que antes de ir eu tinha uma ideia completamente equivocada de várias coisas, e estar naquele ambiente me ajudou a alinhar de forma muito interessante vários pensamentos, desfazer alguns conceitos, e construir outros.

Fomos eu e Clarice à ecovila por convite de uma colega de trabalho dela, que já tinha participado de um projeto no local em um período passado. A moça retornaria ao local para colher mais informações sobre um projeto novo que possui, levando o namorado, que é engenheiro e interessado em processos alternativos de construção. Sabendo de nossa ideia de construir um telhado verde em casa, em conversas no trabalho as duas imaginaram um plano para viabilizar a construção com baixo custo, já que tínhamos o interesse em ter essa inovação em nossa casa e ela conhecia pessoas que podiam usar nossa futura construção como laboratório para algum tipo de curso ou workshop. Teríamos um sistema de troca, o que minimizaria os custos do projeto. Com esse plano iniciado, surgiu a oportunidade de irmos até o local que tem alguns telhados verdes implantados para conhecer de perto a técnica e pesquisar outros detalhes para nosso projeto.

Confesso que a primeira imagem que o conceito de ecovila sugere é a de uma aldeia de bichos-grilos. É muito fácil para o habitante urbano ter essa impressão. E talvez essa tenha sido a mais prazerosa das minhas descobertas no passeio: eu não podia estar tão certo, e ao mesmo tempo, não podia estar tão errado. A surpresa foi das maiores. Após uma viagem de pouco mais de 1 hora até o município de Magé, tomamos o caminho do distrito rural onde se encontra a propriedade. A região me fez sentir uma familiaridade impressionante. Situada no pé da serra dos órgãos, após um sacolejante trecho final de viagem numa estrada de terra coberta com pedras, o sítio onde a ecovila funciona é literalmente no pé da montanha. Para um serrano como eu, ter à volta a visão daqueles paredões de pedra concorrendo com o azul do céu proporciona uma sensação de proteção e acolhimento. É como voltar pra casa. Fomos chegando, estacionando e descobri que a visita daquele dia era direcionada a um grupo limitado de pessoas, e enquanto fazíamos um reconhecimento preliminar no local, aguardávamos as pessoas que ainda não tinham chegado para completar o grupo. Um detalhe que não me passou despercebido foi o quanto os pretensos “bichos-grilos” chegavam bem motorizados em seus Chevrolets Captivas, Toyotas Hilux e similares.

À medida que o povo foi chegando para fechar o grupo, havia um café da manhã frugal, porém carinhoso esperando por todos. Descobri que durante muitos anos o lugar tinha funcionado como uma pousada, hoje não mais. O rapaz que funcionava como cicerone da ecovila era um agregado funcional que conhecia o projeto e já tinha morado lá em outra temporada. Participou da construção de algumas experiências de sustentabilidade e ficou encarregado de fazer um pequeno tour de apresentação do local. Através dele fiquei sabendo a história do local. Nascido da vontade de um chefe de cozinha alemão e sua esposa argentina, que desejavam morar “no meio do mato”, o que hoje era uma ecovila começou como um sítio que se tornou uma pousada. Enquanto o tour nos apresentava o bucólico, embora um tanto caótico terreno da propriedade, víamos o simpaticíssimo gringo entre canteiros e hortas, às voltas com o que viria a se tornar o almoço de mais tarde. Eu e Cla nos divertimos com as fotos que pudemos tirar, enquanto percebíamos o grupo heterogêneo de pessoas que nos acompanhava. Uns com a típica postura estereotipada de bichos-grilos de boutique, outros, parecendo não tão à vontade, e preocupados com a presença ou não de carne no almoço, enquanto outros lutavam com crianças choronas e que pediam atenção toda vez que os pais tentavam ouvir o que o guia explicava.

O pequeno incômodo que essas observações acumuladas foram me causando estava prestes a ser eliminado. Após o tour tivemos a oportunidade de cair na água fria da cachoeira, que formava um poço numa das laterais da propriedade. Serrano como sou, cachoeira tem em mim o efeito que o mar tem no surfista. A água fria da montanha limpa energias negativas, clareia o pensamento, acalma. Já ajudou até a cicatrizar ferimento. Bastou apenas o banho de cachoeira para esquecer das incoerências das pessoas, para abstrair as crianças mal-comportadas e tornar minha atenção mais voltada para os detalhes.

À medida que o tour prosseguiu, pude ver os pontos altos e baixos do empreendimento. Consegui perceber o quanto algumas ideias eram boas, excelentes até, mas careciam de um simples toque de refinamento, de acabamento. Pude perceber o quanto a ideia de sustentabilidade ainda é difícil de vender e de convencer por aqui por não ter uma capacidade de se apresentar como algo que, por motivos de sobrevivência, deve ser mainstream e não um nicho, simplesmente. A cabeça funcionando a plena capacidade. E quando digo plena capacidade, quero dizer nem no excesso estressante da ansiedade selvagem urbana, nem na letargia autoimposta do hippie estereotipado.

O tour foi chegando ao fim, com a apresentação de todas as iniciativas do local, que me surpreenderam positivamente pela coragem em sua implantação, pela correção dos ideais de preservação do meio ambiente. E que também me surpreenderam negativamente por saber que depois de 25 anos de projeto, tendo recebido visitantes de vários países com tanta troca de experiências e riqueza de ensinamentos, havia tão pouco de progresso perceptível no projeto, tão pouco de procura de integração dessa consciência ambiental com o mundo lá fora e tão pouca sensação de que havia um trabalho de levar o pensamento da sustentabilidade para influenciar a esfera pública em um país ainda tão atrasado nesse sentido quanto o nosso. O almoço vegetariano (para desespero do rapaz carnívoro que mencionei anteriormente) foi agradabilíssimo. Na qualidade de primatas onívoros, para mim e pra Clarice tudo foi festa. O mais surpreendente foi que a pessoa mais incomodada que vimos na grande mesa do almoço foi uma moça vegana, que fazia questão de perguntar tudo que continha em cada prato preparado com tanto carinho pelo alemão. A impressão era que ela esperava que algum bife escondido iria saltar em cima dela a qualquer momento de baixo de uma rodela de batata-doce. Enquanto ela catava a comida com uma cara que variava entre o nojinho e a desconfiança, eu me deliciava com uma lasanha de berinjela. Também apreciei muito uma salada feita com folhas de beldroega, que nunca tinha comido e que descobri com prazer ser uma farta fonte de ômega3. E com mais prazer ainda ao saber que já a possuíamos crescendo em nosso quintal há tempos sem sabermos que era comestível. Aproveitei o movimento pós-almoço para conversar com o alemão, simpaticíssimo, que gentilmente me prometeu mudas de taioba ao saber que eu queria plantar essa verdura em casa.

Após os passeios de digestão do almoço, o povo todo se reuniu num dos locais de convivência da propriedade para fazer uma roda. Iriam-se fazer as apresentações de todo mundo e a troca de experiências que cada um procurava ali. Perderam-se no início alguns preciosos minutos numa forçação de barra, uma coisa ritualística meio imposta, fazendo “ommms” e outras dinâmicas alternativas um tanto constrangedoras, com o intuito de “relaxar” e “conectar-se com a natureza”. Amigos, relaxado e conectado com a natureza todo mundo já estava. Aquele tempo poderia ser muito melhor aproveitado conversando do que fazendo constrangidamente massagem no coleguinha do lado e tentando achar chakras pra liberar energias. A única energia que consegui liberar foi um peido. Por sorte foi silencioso.

Enfim, a roda de conversas propriamente dita foi formada. Cada um falou sobre o que o tinha trazido ali, qual o tipo de informação, experiência ou orientação buscava. Foi finalmente nessa experiência que tive os insights mais interessantes de todo o dia, ainda que os tivesse desde mais cedo. Pela posição onde estava sentado, acabei sendo o primeiro a falar, o que me deu a oportunidade de observar os discursos posteriores em perspectiva ao meu, e de também não ser influenciado pelo que foi dito antes. Falei sobre a degradação do bairro onde moro, que tem sua área verde rapidamente suprimida pela especulação imobiliária desordenada, do nosso interesse no telhado verde, na oportunidade de fazer uma iniciativa desse tipo num ambiente urbano e no desejo que outros telhados fossem surgindo na região onde moro. E passei o “bastão da palavra” adiante. À medida que o bastão rodava, pude aglutinar grande parte das experiências narradas ali, e entender que a sociedade realmente está doente. Percebi o quanto as pessoas, contaminadas por um maniqueísmo pernicioso, tem enxergado o “ir pro mato”, o “sair da cidade”, o “quero fugir desse capitalismo selvagem, desse modo de vida”, como o outro extremo. O cara cansa de trabalhar num banco ou numa multinacional, entra numa crise existencial e resolve “fugir de tudo”. A mulher chora ao contar do quanto sua rotina é exigente, do quanto sua área profissional faz com que ela fique na empresa até tarde quase todos os dias. Sonha em “largar tudo e morar ali”. A necessidade de pertencimento e de identificação com um grupo do ser humano fica clara agora.
Mesmo com um contracheque gordo, um belo carrão na garagem, a pessoa se torna incapaz de lidar emocionalmente com as exigências de sua vida na cidade grande e como a educação emocional é algo rarefeito em nosso contexto social atual, o maniqueísmo se instala. Tudo é extremo. Tudo é oito ou oitenta. Se eu não quero mais ser um capitalista 24 horas por dia 7 dias por semana, vou abandonar tudo isso e virar um hippie no meio do mato. Não existe caminho do meio para essas pessoas. Não há equilíbrio. Não surpreende porque é tão fácil ver pessoas que passam a vida inteira tentando se achar, e no fim das contas não conseguem encontrar, porque acabam esquecendo exatamente o que estavam procurando. Fiquei impressionado com os poucos que conseguiram evoluir um pouco pra além do “estou cansado de tudo isso e vou fugir pro mato”. Me impressionei porque são esses poucos que entenderam que para mudar a realidade da metrópole, para domar a selvageria do capitalismo, para fazer com que as pessoas não sintam tanta vontade de fugir, é necessário empreender. É necessário utilizar as ideias de quem (como o alemão, egresso de uma sociedade muito mais educada nesse sentido) já conhece a consciência da sustentabilidade aplicada, para melhorar a vida aqui no asfalto. É necessário sonhar, e não se limitar a internar-se num ashram e escolher um nome indiano, na tentativa de “se purificar de um mundo que não me entende”. É necessário entender que se vivêssemos em um mundo onde não houvesse superpopulação, nós humanos não seríamos um desequilíbrio ecológico. É necessário entender que ideias precisam ser mudadas, mas que a mudança de ideias passa pelo equilíbrio delas, e que o maniqueísmo é algo trágico, que só serve para atrapalhar nesse sentido.

No fim de tudo, findo o dia, o passeio, as observações, os banhos de rio, as experiências, as conversas e a muda de taioba que levei alegremente pra casa, percebi o quanto o brasileiro ainda precisa mudar em sua mentalidade. O quanto somos irracionais e reativos. O quanto isso nos atrasa, como um todo. Percebi que muito mais que fugir pro mato, precisamos sonhar mais em trazer o mato pra cidade. Sonhar com favelas se transformando em plantações. Sonhar com cidades onde o alimento vem de perto, impactando positivamente na economia. Sonhar com a multiplicação de telhados verdes que ajudam a compensar a temperatura que o excesso de asfalto e concreto elevou com o passar dos anos. Sonhar com cidades arborizadas e bem planejadas, não apenas em suas zonas turísticas. Isso é o mínimo. Ainda temos muito a aprender. Mas o lucro dessa experiência foi ver que por cima de todo o bicho-grilismo e da incapacidade de certas pessoas de olharem além de sua egotrip, já existe gente pensando além, pensando que a sustentabilidade no seu conceito mais amplo não é uma alternativa, mas sim o norte que deveríamos estar mirando.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Sensação térmica

dallol-desert-heat-verão-calor-deserto
Bem-vindo ao futuro
Do aquecimento global
Da incontinência verbal
Dos resquícios do Muro
Da barbaridade virtual
Desse salto no escuro
coletivo-abortivo-viral.

Bem-vindo ao fracasso
De tantas boas ideias
Que ficaram no espaço
Do silêncio das plateias
Ao apertar do braço
Sobre nossas traqueias
Impedindo as palavras,
Impedindo o abraço,
Bem-vindo ao futuro!

Quando o suor não escorre
Antes evapora e oleosa,
A pele frita, a célula morre
O ar quente te abafa e irrita,
A consciência grita,
Antes de se perder
O corpo não se agita,
Pois não há o que faça
A mente acelerar
Nem prazer, nem dever
Só o bafo incontrolável
Da certeza dos impunes,
A cara-de-pau inabalável
E a miséria que nos une.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Poça d'água













É a pequena poça de chuva
Formada com muita insistência
Depois de vários dias caindo
De maneira gentil, delicadíssima
Acariciando o chão abrasivo
Que finalmente arrefeceu,
E cedeu seu espaço

É a pequena tentativa de vida
O restrito espaço de esperança
Frágil como capricho de nuvem
Variável como direção de vento
Que carrega minhas esperanças
Como um pequeno girino,
Um ínfimo organismo
Encerrado numa poça de chuva.

Mas quando a chuva desce do monte
E carrega consigo milhões de anos
Lavando e sujando pelo caminho
Transportando os sedimentos
Os restos, os brotos, sementes
Os ovos e as serpentes
Alimentando as nascentes
Eu revivo também.

Quando a chuva retorna
Pro bem ou pro mal
A cabeça se apruma
A vista se arruma
O mundo volta ao normal.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Um passo à frente para o Brasil

brazil road horizon brasil estrada horizonte

Tive recentemente uma conversa via redes sociais com alguns amigos onde um consenso foi a previsão de nuvens negras no horizonte dessa campanha eleitoral que se aproxima. A meteorologia política apresenta sinais claros: uma tensão no ar, temperatura elevada, pressão atmosférica explodindo, eletricidade a ponto de formar raios. O momento do país é estranho, especial. Passamos pela primeira Copa do Mundo de futebol onde o povo brasileiro conseguiu prestar tanta atenção na política quanto no futebol. O caldeirão de agitação política é composto dos mais variados ingredientes: o desconforto social, o cansaço do brasileiro comum com a situação precária da saúde e da segurança pública, a roubalheira ainda não investigada (mas de conhecimento de todos) nas obras para a Copa do Mundo, a vaia à presidente Dilma, o desencanto de uma parcela crescente da população com o governo programático e ineficiente (exceto para o próprio partido) do PT, a falta de uma oposição verdadeira e atuante ao governo durante mais de uma década por parte dos partidos que deveriam ser de fato de oposição. São muitos ingredientes num sopão estranho que chega até a borda do caldeirão, e que nesses meses que antecedem a eleição, começa a ferver. O caldo vai transbordar, disso não há muita dúvida. O que é incógnita ainda, é como. Se irá escorrer do caldeirão, se tentarão tampar e o negócio irá explodir, só o futuro dirá. Mas uma coisa é certa. Nossos políticos tradicionais, repetindo o erro de avaliação que cometeram nas manifestações de junho de 2013, não estão preparados para nada disso.

Eles entendem apenas da manutenção de suas vantagens, status e poder. Tudo que estarão pensando é em como se comportar nessa tempestade de forma a não perderem suas boquinhas. É o mais básico dos instintos de autopreservação. O político de que o país precisa ainda não "nasceu". Digo, até existem alguns que se encaixariam nessa alcunha, de "político que o país precisa", mas eles são pouquíssimos, estão perdidos boiando num mar de chorume que são seus colegas mais tradicionais. Pra que esses políticos novos (não na idade, mas na maneira de pensar a política) possam trabalhar direito, render no jogo, precisará mudar muito desse sistema que temos hoje. O sistema que funciona agora é todo montado pelos políticos digamos, tradicionais. Atende à necessidade primária deles, que é o cartel de interesses, a manutenção do poder, das vantagens e privilégios. Os políticos novos que estão lá tem muita dificuldade de jogar o jogo das velhas raposas. Não é de se espantar, pois muitas das própria regras do jogo são ofensivas aos novos políticos. Para que isso mude, o país, o sistema, e a própria mentalidade dos brasileiros precisa dar um passo à frente.


Considero que um passo à frente para nosso país seria uma "desideologização" da política. Muitos poderiam se adiantar para achar essa ideia absurda, principalmente os mais radicais, mas a ideia é simples. Vemos, no dia a dia do sistema político brasileiro, duas realidades. Uma, é um infrutífero, (ainda que democrático) debate de ideias, muito polarizado e maniqueísta. É 8 ou 80, é bem contra mal, é ou você concorda comigo ou você não presta. A outra, é uma absoluta amoralidade por parte dos jogadores, os políticos que estão dentro de campo. Não importa o partido, não importa o cargo, a grande maioria tem como preocupação primária a garantia de vantagens, poder e rendimentos para si próprio. A manutenção de seu status quo e muito em seguida, se sobrar tempo, talvez, pensar em trabalhar como político.

Essa discrepância entre esses dois aspectos vem sendo uma chaga que sangra sem parar o dinheiro dos impostos, e atrasa o país. Talvez seja a hora de uma nova "raça" de políticos entrarem em cena. Em primeiro lugar, tem de ter vontade de melhorar o país, pra que tudo melhorando, até mesmo a vida dele melhore também. E depois, tem que pensar que o país é um só, então o país vem em primeiro lugar, e a ideologia e o debate de ideias pode até existir, mas o país tem que vir em primeiro. Desideologizar a política, passa a ser então condição sine qua non para um avanço sólido, real e igualitário para nosso país.

domingo, 15 de junho de 2014

A vaia, a teimosia, a hipocrisia, e o Brasil nisso tudo.


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© Pelicano


Seguem três textos curtos a respeito da vaia à presidente Dilma na abertura da Copa, da polêmica de ataques e defesas que se seguiu ao acontecimento, e minha visão e sentimentos a respeito do evento. 

***

Defender um político que está sendo criticado por não estar servindo ao país como prometeu em campanha, participando de um governo corrupto, e deixando de fazer obras de valor inestimável à nação, é muito mais indesculpável que qualquer grosseria dita numa arquibancada de campo de futebol, na minha humilde opinião.

Falta de respeito é você ser pobre, idoso, precisar de um posto de saúde e ter que ficar deitado no chão de um corredor sem atendimento não digo nem decente, mas minimamente humano.

E isso depois de DOIS MANDATOS e MEIO dessa mesma porcaria de partido no poder. Isso sim é falta de respeito e grosseria indesculpável... com o povo brasileiro. Vaia merecida.

***

Gente que se sente "ofendida e revoltada" com um político sendo xingado (mais que o próprio politico se ofendeu), mas que destila tanto ou mais ódio a outros políticos que são adversários do xingado...

Gente que se arvora a defender hipocritamente as incompetências, os atrasos e as falhas éticas e institucionais desses políticos, mas que ao mesmo tempo desejam ser vistos como baluartes de moral e correção pelos seus semelhantes...

Gente que por apego a escolhas irracionais e vaidades pessoais, ignorantemente bate no peito e proclama a inamobilidade de suas próprias opiniões, como se teimosia fosse qualidade e recusa a admitir erros fosse valor.

Gente que dá muito mais importância a um político no cargo mais alto da nação ser vaiado do que à miríade de atos incompetentes, corrupções, irregularidades, crimes comprovados e mentiras que este mesmo político e seu partido promovem há mais de uma década no país.

Gente que simplesmente por ser, pensar e se conduzir assim, faz com que o Brasil nunca chegue a ser o tal "país do futuro" que tanto merece ser... por ter essa gente que é apegada romanticamente e irracionalmente às mais absurdas e paralisantes idiossincrasias.

Depois, se quiserem saber porque certas coisas no Brasil nunca mudam pra melhor, é fácil...
Perguntem pra essa gente aí...
***
O povo brasileiro passou 500 anos manso, sofrendo desmandos nas mãos de todos os políticos, de todos os partidos. O problema não é só o PT. É o PT TAMBÉM. Essa é a diferença que as pessoas não entendem. Se se bate mais no PT hoje, é porque ele está com a bunda na janela, se fosse outro, que se batesse também.

O que não pode é a hipocrisia de dizer que "o PT não inventou a corrupção, etc.etc.etc." não inventou, mas criticava antes de ser governo, como se fosse imune a ela. Hoje, se chafurda na mesma lama, vai ficar ofendidinho quando for criticado? Não pode. Não tem esse direito, de maneira nenhuma.

Ainda falta muito pra mentalidade do brasileiro mudar. Mas ter-se autocrítica e perceber os defeitos em si mesmo, é altamente positivo. Perceber que temos muito o que melhorar, e encarar nossas limitações em vez de ficar só sambando que nem otários alegres e eternamente atrasados, já é um passo em direção às melhoras que o país precisa.


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Sobre essa Copa aí...

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© epochtimes.com.br

Greves, agitações, polêmicas, reclamações. O Brasil calçou as chuteiras, mas ainda não ficou bem claro se é para torcer pela Seleção, ou se para uma aguerrida troca de caneladas simbólicas. Ou quem sabe, diante das circunstâncias, caneladas reais mesmo, nada simbólicas. Alguns torcem para que o circo pegue fogo, alguns querem que a Copa se dane, se exploda, que a Copa se foda! Já outros procuram assumir um certo bom-mocismo verde-e-amarelo, impressionados em ver que o patriotismo esportivo que os unia até tão pouco tempo atrás já não satisfaz a toda a população de maneira tão unânime. Esses que optam pelo bom-mocismo, talvez saudosos de tempos mais simples e inocentes, quando se sentia o orgulho nacional ao torcer para a Seleção na copa, criticam duramente os que não conseguem mais assumir esse papel.

A questão é que seja a Copa do Mundo de 2014 um fiasco ou não, qualquer brasileiro  minimamente sensato percebe que muitos problemas não resolvidos (ou sequer abordados) pela chegada dos grandes eventos internacionais irão permanecer. A população continuará sem ser alfabetizada decentemente e sem receber uma educação com o nível mínimo necessário para as necessidades que o futuro do país exigem. O brasileiro minimamente sensato percebe também que a saúde pública do país seguirá no CTI. Percebe que o transporte público continuará dominado por máfias, amarrado por lobbies e imobilizado por seríssimos problemas de infraestrutura. De maneira exageradamente tardia, algum indício de mudança começa a despertar na mente coletiva brasileira. Não a mudança ideal, não o "despertar do gigante" que alguns acharam ter ocorrido durante as manifestações de junho de 2013.

A mudança que percebo ocorrer é algo mais espasmódico. Algo que lembra mais ânsias de vômito do que o despertar de um sono. O brasileiro está enojado. O Brasil começa a, talvez pela primeira vez em  sua trajetória, a ter coragem de fazer uma autoanálise e de ser capaz de olhar não só seu lado bom, mas também seus defeitos e o quanto esses defeitos contribuíram para que as coisas chegassem até onde chegaram. Talvez pela primeira vez, o brasileiro tenha conseguido um início de tomada de consciência de que boa parte da (ou talvez quase toda? Ou talvez toda?) "culpa", por "toda essa merda que está aí" é do próprio brasileiro? Talvez. Ainda não se sabe o quão profunda é a capacidade de se autocriticar de nossa sociedade, ou as consequências dela, mas fica claro que o brasileiro quer mais de seu país. E que os governantes, que em última análise são apenas outros brasileiros, não sabem muito bem o que fazer com essa informação. Ou talvez saibam, mas não queiram. Fazer qualquer coisa de positivo com essa energia nova que está circulando solta pela atmosfera desde junho de 2013 implica em parar todos os planos de locupletação, trocas de favores e manutenção de vantagens. Significa deixar de fazer o que nosso sistema político foi criado já fazendo. É algo um tanto difícil de implementar.

Nesse clima, não seria sábio tentar-se empurrar goela abaixo do mundo que o país é capaz de realizar grandes eventos só pelo orgulho nacional. Seria inocente pensar assim. Sempre que um evento de nível internacional acontece, são imensas negociatas para se tirar vantagem. São inúmeras oportunidades de investimento esperando acordos bilionários para acontecerem. Um político esperto consegue capitalizar muito em cima de um evento como esse. Mesmo que o evento não seja exatamente o que o país mais precise naquele momento. Ainda mais quando é um evento que mexe com a vaidade esportiva de um povo. E quando essa vaidade esportiva consegue ser manipulada de maneira hábil por um político ardiloso, a aceitação de uma Copa do Mundo é algo que se torna bem mais fácil pela opinião pública.

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©Gustavo Duarte

Mas o que muitos amantes do esporte estão deixando de ver é que o fato de que pela primeira vez em sua história, o brasileiro está em processo de despertar um pingo de consciência (que seja) para outras coisas que não são novela e futebol. A grande maioria dos textos e manifestos nas últimas semanas criticando quem critica a Copa (vejam só) vem da parte de pessoas que vivem do futebol, trabalham com futebol, estão profundamente envolvidas no universo do futebol. É óbvio que é interesse dessas pessoas que o brasileiro não perca o interesse pelo futebol. Que o brasileiro não torça contra, que o brasileiro não dê as costas para a festa. Não é nada bonito, nem rentável, nem agradável pra quem é do show business ter a casa vazia ou vaias na plateia. Infelizmente, o que essas pessoas ligadas ao "show business do futebol" não tem conseguido perceber, é que vivemos num dos países mais hipócritas do mundo. E que numa das poucas oportunidades em que a sociedade demonstra uma insatisfação com essa hipocrisia, se tenta taxar de "chato" quem "está torcendo contra". Infelizmente, essas pessoas não percebem que por décadas e décadas de tempo perdido discutindo, amando e sendo obsessivos com o futebol como se fosse a coisa mais importante do mundo, o Brasil perdeu não o bonde da História, mas vários bondes, de várias histórias. Perdeu-se até um trem. Para ser mais exato, um trem-bala.

Se o brasileiro demonstrasse amor por seu país e cobrasse de seus governantes com a mesma determinação que demonstra por seu time ou seleção, e cobra seus jogadores e técnicos, viveríamos no melhor dos países, com os melhores serviços públicos e teríamos uma população em estado quase pleno de felicidade. Teríamos um país onde não se rouba, onde não se comete tanta violência, onde não se passa fome.  Mas não é o que acontece. Por causa da hipocrisia brasileira, se você prefere criticar o governo a bater palma para palhaçadas, você é chato. Se você não sente "orgulho" em se vestir de verde e amarelo na Copa (só na época da Copa) e torcer pro seu país, você é chato. Se você prefere que em vez de uma Copa, tivéssemos políticos decentes fazendo obras e promovendo mudanças reais e não marketing partidário e planos de manutenção de poder por meio de negociatas e vendas de cargos, você é chato. Ok, posso até ser chato, mas hipócrita eu não sou.

quarta-feira, 26 de março de 2014

A Grande Caminhada das baratas


As baratas eram seres extremamente sensíveis, apesar da imensa maioria da população carioca desconhecer o fato. Peculiares insetos esses, que residiam no lado de baixo da caótica metrópole. Enquanto alvos de nojo e profundo desprezo pela população da superfície, não tinham problema algum quanto a isso. Viam os humanos como um incômodo menor, e também como uma fascinante fonte de novidades. Após 300 milhões de anos de estadia em nosso planeta, esses sagazes pterigotos marrons evoluíram até o ponto de suas mentes estarem muito além dessas pequenezas entre espécies. Sábias e determinadas, sempre olharam com curiosidade essa espécie de macaco pelado. Teriam destinado às recentes aventuras dos humanos pouca consideração, não fosse uma sanha voraz que fez com que em tão pouco tempo aqueles símios estranhos tivessem coberto todo o globo. Mas de nada disso os cariocas desconfiavam.

Em um determinado ano, as perceptivas antenas das baratas começaram a captar uma certa agitação no ar. Suas costumeiras idas e vindas nos subterrâneos escuros do Rio de Janeiro começaram a pontuar-se de pausas ligeiramente mais lentas. Nem mesmo o mais competente dos entomologistas perceberia, mas as ínfimas frações de segundo a mais nessas pausas tinham um significado da mais profunda importância. Importância para a civilização das baratas, não para a nossa, é óbvio. As baratas interagiam. Nossa arrogante cultura humana não alcança o grau de entendimento suficiente para considerar essa interação como uma forma de comunicação. O que para as baratas não importa nem um pouco, pois a comunicação acontece, e naquele ano o universo das baratas estava em franca ebulição. Mesmo para uma espécie tão resiliente e sábia, dotada da paciência legada por três centenas de milhões de anos de evolução nesse mundo estranho, a ebulição estava lá. E de nada disso, os cariocas faziam ideia.

Naquele ano (sendo “ano” uma invenção humana, baratas não medem o tempo assim), os sentidos de percepção das baratas (uma realidade que nem o mais brilhante dos biólogos jamais tivera condições de sonhar) anunciavam para um ponto bem próximo no futuro o advento da Grande Jornada. Nenhum humano jamais teria como saber disso, é claro. Mas a Grande Jornada é um acontecimento lendário. É algo que toda barata traz gravado em seu íntimo, toda a cultura de sua civilização enxerga a Grande Jornada como o acontecimento de uma era. E não é demais lembrar que para uma espécie que perdura com poucas alterações evolutivas há quase um terço de bilhão de anos, algo dessa monta é infinitamente mais importante que qualquer coisa que qualquer humano seja capaz de considerar. Inclusive os cariocas.


Os sentidos profundamente empáticos e sinestésicos das baratas indicaram gradualmente naquela época um certo nível de interesse e vigilância. A interação com os humanos sempre causou nas baratas um interesse especial, pois nunca uma espécie tinha produzido tanto material aproveitável para elas. As interações químicas e as reorganizações de materiais que os curiosos símios haviam proporcionado fizeram a vida das baratas mudar bastante naqueles poucos milhares de anos de convivência entre as espécies. As estruturas que os humanos modificavam, sua capacidade de produzir deliciosas quantidades de lixo, fezes, imundície e materiais com os mais deliciosos (para as baratas) fedores e asquerosas viscosidades eram algo que tinha levado a civilização das baratas a uma era de ouro. Embora os humanos matassem baratas com certa freqüência, não representavam para elas algo negativo. Os humanos não precisavam viver das baratas. Não tinham nelas sua fonte de alimentos, embora em alguns momentos se alimentassem delas (ou de parte delas sem sequer ter consciência disso), fato que as divertia profundamente ao lembrar. De qualquer modo, eram coisas nas quais os cariocas não pensavam.


Quando os humanos evoluíram e criaram sua assim chamada civilização, a aguçadíssima sinestesia das baratas começou a captar com profundo fascínio as cores e sons que as interações daquela espécie causavam. Não só era fascinante a produção desse novo e maravilhoso lixo, com toda a miríade de novas combinações consumíveis, mas também o novo tipo de entretenimento que a atividade humana proporcionava às baratas. A comunicação humana era colorida, seus conflitos eram música, enquanto a interação, a violência e a degradação de suas personalidades tinham um cheiro inebriantemente delicioso. A vida segura no subterrâneo era muitas vezes deixada de lado em nome do infindável prazer de chegar mais perto das sensações maravilhosas que aqueles seres estranhos provocavam. Um humano não entenderia, mas o risco de morrer para uma barata, apesar de ser levado em consideração, é algo a que elas dão bem menos importância do que eles. Daquelas coisas que cariocas nem fariam questão de pensar.


Naquele ano, o ano (humanamente falando) em que aconteceu a Grande Jornada das baratas, todo o cosmos se equilibrou perfeitamente. É necessário um alinhamento especial de fatores para que a Grande Jornada seja empreendida. Uma quantidade de lixo espetacular teve que ser produzida. A forma como esse lixo tomou as ruas tinha que ser especialmente espetacular também. A música inebriante gerada pelo desprezo de um humano para com a limpeza da cidade onde ele vive tem que estar no tom correto para que a Grande Jornada tenha condições de acontecer. As interações humanas precisam acontecer de uma forma muito específica. A violência entre os humanos tem que existir numa intensidade e quantidade muito específicas. A violência ser entre pessoas de uma mesma família também contribui muito para o frescor e a delícia do seu cheiro. Mesmo a barata com o olfato menos apurado precisa conseguir perceber a inebriante diferença. O desprezo entre os seres humanos vivendo em um determinado raio de distâncias precisa acontecer com tal freqüência e costume, que o brilho de suas cores se torne inconfundível mesmo para a mais jovem e inexperiente das baratas. A quantidade de humanos morando e vivendo perto, no meio de, em volta do lixo também deve aumentar o suficiente para tornar deliciosa para as baratas essa proximidade. E por fim, uma classe muito específica de humanos que vive um pouco mais longe das baratas deve exalar o som proveniente da satisfação de seus desejos. A música de uma negociata bem concluída deve ser captada. Os belíssimos acordes de um desvio fraudulento de verbas. A admissão em meio a risadas em um jantar requintado de que um hospital não está funcionando ou que um equipamento comprado está apodrecendo em algum depósito. Quando a conjunção de tantos fatores aparentemente impossíveis acontece, as baratas sabem. A Grande Jornada está perto de acontecer. Embora os cariocas ainda não percebam o fato.

Um dia, não importa muito qual foi o fato final, o gatilho do advento foi acionado. Poderia ter sido o aromático espancamento de uma trabalhadora por “rapazes de boas famílias” da Zona Sul carioca. Poderia ter sido bandidos arrastando uma criança por quilômetros em um carro, até que o pequeno corpo ficasse irreconhecível. Sendo que nesse caso em específico, a cereja do bolo seria o pouco arrependimento por parte dos criminosos. Poderia ser o fascinante caleidoscópio de cores que as antenas das baratas captaram ao testemunhar policiais arrastando o corpo de uma mulher que estava na mala de seu camburão, após uma desastrada e trágica ação. Poderia ser o sabor do sorriso de um político ao perceber o silêncio dos jornais sobre o sumiço milionário de certas vigas após a demolição do viaduto da perimetral. A questão é que, no momento em que toda essa espiral de acontecimentos entrou em colisão na turbulência da vida da tal cidade, a Grande Jornada aconteceu. Nesse dia, os cariocas souberam.

Era um dia de chuva, pois a água é importante. Ruas alagadas, caos no trânsito, Praça da Bandeira alagada, “pois as obras ainda não haviam sido concluídas”. Fim de tarde, início de noite. Os pontos de ônibus cheios de gente tentando chegar em casa. Sem qualquer aviso perceptível para os humanos (embora para as baratas, tenha ocorrido entre cantos de glória, exclamações de júbilo e prazer), a Grande Marcha para a superfície do Rio de Janeiro aconteceu. Todos os milhões, bilhões, os ignorados trilhões de baratas existentes nos cantos escuros dos bueiros da cidade marcharam a um só momento para fora de seus esconderijos. O inesquecível clamor de terror de uma população de humanos sendo assaltada pelo medo primordial, pela loucura, pelo nojo (tão cheiroso para as baratas), seria repetido e recontado por todas as gerações de baratas daquele dia em diante. A onda marrom-escura que subia por pernas, que cobria totalmente pessoas caídas, que fazia carros inteiros desaparecerem sob seu avanço era algo nunca antes visto por olhos humanos. Muita gente morreu do coração, muita gente teve convulsões, muita gente não teve nem como nem para onde fugir. As baratas, enlouquecidas em sua euforia, continuavam em torrente, uma procissão interminável saindo pelos bueiros, pelos ralos e buracos. Demonstravam assim seu amor por essa população que deixa lixo na praia, que mantém cracolândias, que engravida meninas de doze anos, que cheira cola, que não educa, que corrompe, que não cuida, que rouba, que mata, que estupra. A Grande Marcha era a expressão máxima do agradecimento das baratas por todas as boas sensações e prazeres que essa generosa e jovem espécie de animal trouxe para a civilização desse grupo de insetos. Nesse dia, os cariocas souberam, embora jamais fossem capazes de compreender. Mas como diria uma barata, “isso são coisas de espécie jovem, eles ainda tem muito a aprender”.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Super-heróis, princesas e de onde vem os monstros


Nesses últimos dias, devido a uma conjunção de acontecimentos, eventos familiares, leituras diversas e observações da vida, peguei me pensando nas fantasias infantis. É isso mesmo. Fantasias infantis. Reparei o quanto elas estão corriqueiras hoje em dia, muito mais, infinitamente mais que quando eu era criança, por exemplo. Só que essa mistura louca de coisas que aconteceram nessa semana que passou me fizeram reparar a questão das fantasias por um ângulo diferente, acabei encontrando uma esquina no pensamento para poder interpretar o assunto, e vim parar aqui, nesse texto.

Comecei a pensar em como se tornou comum "vestir" as crianças de super-herói (mais comumente os meninos) e de princesa (mais comumente as meninas). A aparente popularização das fantasias deixou de ser um recurso carnavalesco e muito mais improvisado, como era nos já longínquos inícios de anos 80 da minha infância. Hoje é muito frequente ver os pirralhos usando suas roupinhas de herói e princesa como roupas do dia-a-dia. Muitos podem lembrar do filme "A Creche do Papai" do Eddie Murphy, onde tinha um moleque que passa o filme inteiro com a roupa do herói Flash, e acha que é o próprio. Apesar de ultimamente eu não ter visto um moleque achando que é o próprio herói representado pela fantasia que está usando, o número de fantasiadinhos é indubitavelmente maior hoje do que era na época que eu tinha a idade deles.

Tentei lembrar como era a minha relação com as fantasias de herói naqueles tempos. O que me veio à memória foi algo bem interessante, do ponto de vista simbólico. Devido à conjunção da menor disponibilidade desse tipo de roupa/brinquedo no mercado com o fato de minha família ser dura mesmo, a possibilidade de "se vestir de herói" era muito mais remota para a criançada de então do que é para as de hoje. Lembro de ver, com certa raridade nas propagandas dos gibis da época um tipo de fantasia que não passava de uma roupinha de malha estampada com as cores e os motivos de um ou outro herói, e isso já me parecia algo fantástico, quase inalcançável. Era caro, era difícil de comprar, era supérfluo. Ou seja, se quisesse brincar de ser herói, tinha que usar a imaginação. Sem perceber, eu e provavelmente muitas outras crianças dessa época, estávamos montando nossas personalidades com um componente especial, que era: "você não é um herói, você precisa se esforçar muito pra ser um herói, ser um herói é algo que tem que ser perseguido, deve-se querer muito ser um herói para que assim seja". E para sermos heróis, a gente usava a imaginação. As asas dela nos transportavam para o mundo das abstrações que embora inocentes, iam trazer noções de o que é ser herói, o que um herói faz, e todo um mundo de aspirações de coisas elevadas e grandiosas que os heróis faziam (ou só encher os monstros de porrada e pronto). Mas pensando aqui, quem garante que encher monstros de porrada não fazia parte do "treinamento" para as dificuldades que enfrentaríamos na vida adulta? Pois é.

E hoje, vejo uma mudança na dinâmica das fantasias infantis. O que antes era algo que as crianças brincavam de ser, aspiravam ser, fingiam ser, hoje é reforçado na cabeça deles que eles são. Todo garoto é tratado pelos pais como se fosse um super herói que já veio herói do óvulo. Toda menina é uma princesa que já veio linda, rica, poderosa e com direito a súditos. A roupa da princesa, o uniforme do herói não é mais algo a que se aspira, alguma conquista, como um esperadíssimo brinquedo a ser ganho no dia das crianças ou no Natal. É algo corriqueiro, é algo do dia-a-dia, é uma roupa comum. Todo menino é um herói, toda menina é uma princesa. E sempre que eu me pego pensando em como a cabecinha dessas crianças está absorvendo esse tipo de informação, não consigo deixar de me preocupar um pouco. Como será um homem adulto que cresceu sendo tratado desde muito pequeno como um ser superior? Como um presente dos céus? Como será para uma mulher que desde a mais tenra infância é chamada por um título de nobreza, descobrir que é apenas mais uma num mundo de tantas pessoas, que não terá súditos para lhe servirem pra sempre. Como é para os adultos resultantes se livrar das fantasias de heróis e princesas depois que eles crescem demais para caberem nelas? Que tipo de reflexo psicológico fica quando os príncipes e princesas crescem e descobrem que o mundo não é o conto de fadas que pais culpados tentaram armar para eles? É sempre nessa hora que eu desconfio ter descoberto a origem dos monstros...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Viva o bandido brasileiro!*


Um bandido tem poder. Mas tem muitos que acham que não. Por mais que eu tenha engulhos quando alguém vem com aquele argumento batido de que o bandido é um excluído, um pária, um desfavorecido pela sociedade malvada, ainda tem muita gente boa por aí que sofre lavagem cerebral para repetir esse mantra. Sinto nesse tipo de posição uma canalhice tão profunda, um cheiro tão azedo de revoltinha revolucionária adolescente mal resolvida, que chega ao nível do patético. É o fedor de quando as pessoas agregam a uma ideologia um fervor tão religioso, de um fanatismo tamanho, que qualquer coisa dita em nome daquela ideologia passa a ser sagrada, assume ares de uma lei divina e indiscutível.

Mas um bandido tem poder. Diferente do que dizem os defensores ferrenhos dos direitos humanos dos criminosos, um bandido tem poder. Principalmente no Brasil. Nosso país é a pátria dos mais poderosos criminosos do mundo. Aqui, não são só os ricos, “as elites” que se beneficiam da impunidade. Nosso sistema, nossa segurança pública são tão falhos, tão falidos, que mesmo um ladrão pé-de-chinelo pode contar com boas possibilidades de receber seu quinhão de impunidade. Nisso o Brasil tem se superado cada vez mais: na socialização da impunidade. E mais, ao que parece, tem estendido aos bandidos vários benefícios, como se eles fossem parte de um programa não-oficial do governo. O que antes era chamado de roubo de cofre público, de corrupção, locupletação, hoje é chamado de forma carinhosa de “malfeito”. O que antes era um ladrão, um assassino, um criminoso comum, hoje é chamado de vítima da sociedade, considerado um indefeso que se revoltou com esse sistema tão mau que faz com que ele, para ter o tênis de marca, as correntes de ouro e o dinheiro para comprar sua diversão, precise roubar de quem conseguiu isso tudo, vejam só, trabalhando! É apenas um justiceiro, talvez, esse ora chamado bandido? Segundo a lógica (?) de alguns, o pobre rapaz armado com uma pistola representa um grito de revolta contra essas pessoas que se escravizam, trabalhando horas e horas para poder desfrutar essas mesmas coisas que o nosso valente rapaz da pistola pode roubar em questão de minutos. Ora, não é lindo esse raciocínio? Vamos defender o direito desse rapaz a um tratamento digno. Vamos impedir que as pessoas achem justo que ele seja preso, ou que sofra o risco de morrer por estar empreendendo este tipo de ação tão, digamos revolucionária.

Só que o bandido tem poder. O bandido tem o poder de uma arma de fogo carregada. Ele tem o poder conferido pela quase-certeza da impunidade. Ele tem o poder de privar da vida uma pessoa indefesa diante de sua agressão. Ele tem o poder de remover para sempre essa pessoa do convívio de seus familiares. Ele tem o poder de ser defendido por pessoas que se apressam em ver seu lado da história, mas que não tem tanta pressa assim em consolar ou procurar entender o lado dos milhões, milhões e mais milhões de pessoas, pobres, ricas, velhas, jovens, filhos, pais, irmãos, avós, uma infinita e muito mais importante amostra de gente. Todos esses milhões são as pessoas que não são criminosos, que não são assaltantes, que não são vagabundos, que não são bandidos, que não fazem apologia à vida de crime, que não fazem parte de uma organização criminosa. São apenas pessoas, são a maioria do país. São esses que tem seus direitos humanos diariamente esmagados sob o poder da violência. Sob o poder dos poderosos. Quem defende os direitos humanos deveria entender que somos todos humanos. Que defender direitos humanos é permitir que as crianças que brincam na favela desejem ser algo melhor que um ladrão que rouba motos armado de pistola. Que defender direitos humanos é pensar que um contexto social onde “a onda é ser bandido” mostra uma relação de poder distorcida e nociva. Quem defende direitos humanos deveria entender que correr para defender o direito do criminoso é uma afronta, um tapa na cara das avós, mães e irmãs que choram por seus filhos, netos, irmãos, que perdem a vida do outro lado do cano da arma de um rapaz que acha “sou sinistro mesmo, eu mato mesmo por que sou vagabundo”. E que isso acontece tanto no asfalto quanto na favela. Provavelmente até mais na favela que no asfalto, só que os defensores dos direitos humanos não entendem tanto de favela quanto pensam entender. Eles não percebem que o povo que vive na periferia quer ter uma vida melhor, quer poder trabalhar, e não gosta de viver tão próximo desses bandidos que os defensores dos direitos humanos acham tão românticos, tão contestadores.

Quem defende os direitos humanos deveria entender que uma vítima de latrocínio nada fez, não pediu para estar ali, mas que um assassino em um presídio lotado, teve que matar alguém para poder lá estar. Quem apressa-se a defender os criminosos gosta mesmo é de defender os poderosos. Porque? Ora, bandido tem poder. 
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* aviso do autor: o título desse post contém sarcasmo (essa explicação também)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A história de Kabaro - Parte 04

© Momotte2

Ao fim de minha primeira vida, meu espírito (ainda não plenamente consciente de si) começou a vagar sem rumo pelo que parecia ser uma região fria e nebulosa. Era tão diferente da terra ensolarada e com tantas paisagens diferentes onde vivi, que demorei a entender o que acontecia. Só percebi melhor o que se passava quando parei na beira de um riacho. Sentia sede, e me atraiu o agradável som de água rolando nas pedras. Parei á margem, e senti um incômodo muito forte ao observá-lo de perto. Apesar de não sentir cheiro algum, percebia o limo cinza e várias coisas atiradas no rio ou boiando, coisas estranhas que eu nunca tinha visto, algumas pareciam potes de barro, porém mais retas e feitas de algum material desconhecido. Objetos estranhos e aquele limo cinza nas pedras, que me impediram de sequer tentar beber dali. Ao me inclinar por sobre a margem para observar, pude ver meu reflexo e ele se parecia comigo no auge de minha juventude, e não com o velho cansado que eu lembrava ser nos últimos momentos de consciência, antes de meu espírito deixar meu velho corpo. Aquela cena me surpreendia tanto quanto o aspecto do rio. Me afastei, embora não antes de mirar o reflexo mais uma vez, com vontade de me agarrar àquela imagem de um homem jovem e saudável. Depois de ver o reflexo mais uma vez, dei as costas ao rio.

Em meio à névoa, voltando pelo caminho por onde tinha chegado ao curso d’água, identifiquei uma árvore enorme a alguma distância. Sua aparência era envelhecida e um tanto triste, porém não tão estranha aos meus olhos quanto o aspecto do rio cinzento. Acomodei-me perto de suas grandes raízes e observei minhas mãos e meus braços, que combinavam com a imagem de juventude que o reflexo do rio mostrou. Minha mente parecia funcionar com menos da metade da velocidade que me era costumeira, que era ainda ágil mesmo nos meus tempos de velhice já avançada. Cada pensamento agora demorava um tanto a se formar, e parecia passar muito tempo até que eu parasse de pensar em uma coisa e pudesse começar a pensar em outra. Quando alcancei a noção de que tinha partido da minha vida e que estava ali naquela região tão estranha em forma espiritual, a mente pareceu clarear um pouco. Minha velha curiosidade retornou, assim como um domínio mais próximo de meus pensamentos e tive vontade de explorar os arredores.

Olhei a árvore, percebi que também não se parecia com as árvores da minha terra, mas que combinava pefeitamente com a atmosfera soturna daquele lugar, que parecia flutuar entre flocos de uma grossa névoa cinzenta. De seus galhos pendiam folhas compridas e tristonhas, de um verde escuro e sóbrio. Sua casca cinzenta e repleta de liquens parecia fazer parte daquele local, e de nenhum outro mais. Seus galhos se estendiam até boa distância do tronco, bastante retorcidos porém sempre em uma direção definida. Em um deles, um pássaro preto. Olhei-o com curiosidade, pois se parecia com alguns de que me lembrava, embora não fosse igual a nenhum de que me lembrasse. À medida em que me aproximei do galho onde estava, me retribuiu um olhar, e o arrepio que senti me deu certeza de que havia inteligência no brilho por trás daqueles olhos de pássaro.

Fiquei parado, entre a curiosidade e a apreensão, enquanto o pássaro saltitava pelo galho até mais próximo de mim. Virou a cabeça algumas vezes, como se querendo me olhar por ângulos diferentes. Enfim emitiu um som com sua voz rouca, embora perfeitamente compreensível:

-Kabaro!

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Depredando e quebrando e seguindo a canção

Pixação em placa de ônibus - Av. Presidente Vargas, 14/06/2013
Eu mesmo tirei a foto.
Protestos foram organizados no Rio de Janeiro e em São Paulo nessa última semana, sob o mote de reclamar-se do recente aumento das passagens. Perfeito, protestar é um direito, é uma característica marcante de uma sociedade democrática, livre e onde há liberdade de expressão e opinião. Mas quando se olha uma situação como a desses últimos protestos de forma um pouco mais detalhada, analisa-se seus ângulos menos aparentes e principalmente, procura-se o que está por trás das aparências, algumas verdades inconvenientes acabam aparecendo. Mas ainda assim estão em seu direito de protestar.
Passeatas compostas por uma juventude cheguevarista filhos de funcionários públicos de carreira, cooptados por partidos de uma esquerda arcaicamente extremista. Passeatas coordenadas por sindicatos, partidos e organizações que ainda acreditam que a solução para os problemas do mundo é implantar a utopia da esquerda leninista, ou maoísta, ou talvez até polpotista. Mas ainda assim estão no direito democrático de ir à rua expor suas opiniões.
Eis que no ânimo exaltado da fúria revolucionária, da afliceta vermelha, um ou outro jovem faz uma pixaçãozinha aqui, quebra uma vidraça ali, destrói um ônibus acolá. Logo, nas redes sociais, pululam outros jovens (e alguns não tão jovens) apoiando, dizendo que “é isso mesmo”, “temos o direito de protestar”. Outros mais exaltados dizem que “tem que quebrar essa porra toda mesmo”, num arroubo de agressividade digna de um Capitão Nascimento (vejam só) em Tropa de Elite. Mas ora, esse não é o cara da esquerda, da paz e do amor?
E aí você observa a discussão, e aparece aquele velho discurso repetido, vomitado, regurgitado, digerido e vomitado de novo, isso sem parar, desde o século passado. É o mesmo papo que gira entre capitalistas nojentos, donos do capital, etecétera, etecétera. Só que como o governo federal é de esquerda (mesmo que o fato de estar sentado no trono faça com que não se comporte tanto como esquerda assim) os manifestantes não deixam claro que o protesto é por causa da inflação. Não dirigem sua fúria claramente em direção à presidência da república, ao congresso, aos deputados, aos governantes em geral. É um esperneio simbólico, uma pirraça violenta. Não há inteligência na manifestação. Não há direcionamento. E o que a sociedade vê são jovens nas ruas, de repente acontece um quebra-quebra, a polícia entra em cena, acontece o que sempre acontece nessas situações. Cenas de violência, truculência, polícia brasileira sendo polícia brasileira com toda a falta de gentileza que o conceito traz implícito.
Aí a gente se pergunta: Porque esses jovens não foram orientados a se manifestar contra os acordos entre os municípios e as empresas de ônibus, diante dos que os assinam? Porque os protestos não aconteceram de forma a pressionar quem de fato poderia resolver o problema? Porque os partidos, sindicatos e uniões estudantis que patrocinam esses protestos não estão fazendo protestos para exigir menos corrupção no congresso, mais e melhor educação, e a queda da inflação por parte do Governo Federal? Porque há um interesse diverso disso tudo por trás desses protestos. Eles se coordenam com protestos estimulados em todo o mundo. Quem monta esses protestos não está preocupado com o Brasil ser um país corrupto. Não pretendem, por mais ideológicamente imbuídos e idealistas que sejam, fazer o que é certo para o país. Pretendem sim impor sua opinião, nem que pra isso tenham que destruir a sociedade, para poderem construir outra por cima com as caraterísticas que eles irão impor.
Trabalho numa das principais ruas do centro do RJ e praticamente todo mês vemos um protesto. Uma hora é greve dos bancários, outra hora é o pessoal da saúde, algumas vezes são estudantes somente. Quando as manifestações são grandes, causam um certo transtorno no trânsito, atrapalham o funcionamento da cidade por algumas horas. Nessas manifestações, uma coisa é comum. Nunca, jamais são feitas de maneira a atrapalhar, impedir o trânsito ou transtornar a vida de alguém que poderia de fato resolver o problema da classe. Nenhuma manifestação dos bancários sequer chegou ao ouvido do proprietário do banco. Nenhuma passeata dos funcionários da saúde parou o trânsito em frente ao Palácio Guanabara ou na rua onde o governador, ou o prefeito moram, impedindo-o de sair de casa. Tampouco as organizações, partidos e entidades que promovem essas manifestações se interessam por expor as negociatas dos donos das cidades, em levar à justiça as máfias, em acabar com as injustiças. Eles não fazem isso pela simples razão de que isso não faz parte de sua agenda ideológica adestrada. E quanto mais próximo chegamos do topo dessas organizações políticas, mais íntimos do poder eles se tornam e aí eles não tem mais como bater de frente com esses mesmos “donos do poder capitalista”, pois em alguns casos sentam-se na mesma mesa e freqüentam os mesmos restaurantes que eles. Vide a relação de amor entre o atual governo do Rio de Janeiro, um certo bilionário carioca e suas conexões com bilhões e bilhões de incentivos generosamente negociados com o Governo Federal. Aí o pessoal dos partidos finge que não está vendo, da forma mais hipócrita possível.
De resto, me pergunto... Será que, caso esses jovens tão imbuídos de uma afliceta comuno-idealista, quisessem na Cuba de Fidel, sair às ruas para protestar contra o que quer que fosse, teriam sido tratados com mais suavidade pela Policía del Partidón? Suspeito que não...

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O mendigo e o poeta


João Carlos sentiu ânsias de espancar o cara. Mesmo ali naquele lugar tão agradável e numa tarde-quase-noite de temperatura amena. O sol despedindo-se do dia, as nuvens pintadas de um rosa ao mesmo tempo feminino e vital. Um fim de dia sexy, prenunciando uma noite promissora, aberta de possibilidades. Mesmo assim, diante de tal cenário, sentiu aquela vontade primitiva e urgente de espancar o cara.

Talvez fosse a aparência dele... Todo aquele despojamento cuidadosamente estudado, aquela falta de estilo flagrantemente estilosa. Aquele jeito relaxado e à vontade que parecia ser fruto de horas de treino diante do espelho. Ou talvez aquele cabelo limpíssimo e saudável, penteado cuidadosamente em dreadlocks de forma a parecer nojento, ensebado e preso com uma faixa. Talvez a roupa, que mesmo usada de forma a produzir uma aparência quase hippie, trazia em algum lugar a etiqueta de uma loja caríssima da Zona Sul. As sandálias de couro, também exibindo um pequeno logotipo de uma marca que não condizia com a intenção semiótica da figura que as trazia calçadas.

Mas depois, analisando em retrocesso aquele momento, João percebeu melhor. Lembrou que a gota amarga de irritação que desencadeou a vontade de empurrar a cabeça daquele indivíduo repetidas vezes contra parede até que seus dentes saltassem (ou até que seu rosto se transformasse em uma massa de carne não-identificável) era a maldita pasta. Na verdade, não a pasta azul de polionda que ele carregava, mas o fato de estar repleta de papéis. Papéis baratos, mal dobrados e xerocados com qualidade péssima. Papéis cobertos com desenhos irritantemente posicionados na fronteira entre o quase bem feitos e o infantilmente psicodélicos. Papéis com desenhos desesperadoramente previsíveis de mulheres virando rios ou árvores, de conexões entre homens e astros, planetas ou fluxos celestes. Desenhos de cidades se transformando em apocalipses, de ratos e morcegos protagonizando atos humanos. E por fim, a poesia. Sim, escritas à mão, entremeadas naquelas páginas, disputando espaço com os desenhos previsíveis, as denominadas poesias, oferecidas ali, na porta daquele centro cultural. Na porta de um prédio belíssimo, repleto de oportunidades de testemunhar poesia em cada pequeno detalhe, fosse ele de uma obra, de um pequeno gesto de um visitante, ou de uma pequena rachadura numa bela coluna antiga.

Como um mendigo na porta de uma igreja, que nada quer com Deus nem com reza, apenas desejoso de um trocado para a cachaça de logo mais, ali estava ele com sua maldita pasta azul.Como um mendigo que recusa a admoestação do velho padre, escolhendo firmar seu santíssimo, arrogante e autoproclamado direito à caridade dos trocados de quem passa, ali estava ele vendendo sua assim chamada poesia. Imbuído da mesma férrea certeza do mendigo na fé de sua cachaça, e na recusa da possibilidade de levantar-se da sujeira em direção a qualquer outra perspectiva da vida, o cara ofereceu a João sua poesia previsível. Ainda tomado pela ânsia de espancá-lo, sem que pudesse jamais explicar que tal ânsia não era, sobremaneira gratuita, João Carlos limitou-se a parar defronte a ele. E dizer quase entre dentes, com um olhar de indisfarçável ferocidade:
-Não obrigado. Quando quero poesia ruim, eu mesmo faço.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Criaturas da noite





Quando vemos filmes de terror, procuramos entrar em contato com certos sentimentos-limite numa atmosfera controlada. Gostamos da sensação de saber que podemos experimentar um pouco do susto, do arrepio, do desconforto, e que basta um botão para desligar tudo aquilo. Basta um STOP para que retornemos ao nosso mundinho confortável e seguro. Alguns de nós tornam-se entusiastas, admiradores, e até fanáticos por essa abdução para o mundo do macabro, do proibido, do quase impensável em nossa realidade tão controlada. Usamos os estímulos sensoriais que o terror ficcional nos proporciona como válvula de escape para muitas das nossas questões internas, um alívio ficcional para certas dores acumuladas em nossa psique, a grosso modo.

Até que um dia nos deparamos com o desconhecido, e a fronteira entre esses dois mundos deixa de ser clara. Até a hora em que ficamos frente a frente com uma situação que ameaça nossa sanidade. Até o momento em que o medo verdadeiro invade nosso ser, e ficamos no limite da perda do controle. Até agora.

Sinto o suor correndo pelas minhas costas, cada gota que brota da minha pele. Nunca meus sentidos estiveram tão aguçados. Nunca me senti tão alerta. Meu coração bate tão forte que sinto as veias pulsando em minhas têmporas e minha cabeça dói. Agarro a beirada do colchão, nesse momento interminável desde que me dei conta da presença da criatura. Nunca imaginei que pudesse ser assim. No meio da noite, acordar e pela janela aberta ver um rosto, uma presença, algo de fato. 

A luz da lua ilumina bastante lá fora, de maneira que posso ver seu contorno na janela com perfeição. Seu corpo magro, algo de um animal pelado, o formato esguio evidenciando uma elasticidade felina, e ainda assim a inconfundível percepção de uma inteligência humana, ou ao menos semelhante à humana, guiando seus movimentos. A criatura se mexe lentamente, se ajeita, a cabeça ora espreita para um lado, ora pra outro, os olhos com um brilho sinistro pregados em mim, tal os do gato em sua presa. A leveza com que alçou a beirada da janela, e se encarapitou como gárgula amaldiçoado no limite das trevas e da luz da lua, maldita leveza. As garras, muito brancas, muito proeminentes, evidentes mesmo na penumbra do quarto, parecendo absorver um pouco da luz que as ilumina.

Tento me mexer, mas cada pequeno movimento que faço gera uma reação, um aumento do estado de alerta da criatura, uma virada mais rápida da pequena cabeça. É como se procurasse ler meus pensamentos. No limite da sanidade, meu cérebro se inunda com avisos hormonais de perigo, de fuga, desespero. A mera presença da criatura ali, a poucos metros, me transmite a certeza de que aquele ser não-natural seria capaz de transpor a distância em uma fração de segundo. Meus olhos vasculham nervosamente em torno, à procura de algo que possa usar como arma. Celular, carteira, copo plástico, livro de bolso, nada que sirva na mesa de cabeceira. Quando tenho coragem de fixar o olhar na criatura percebo que o pequeno ser se levanta, exibindo uma postura perfeitamente humana e bípede, apesar de seu diminuto tamanho. Não passa de 70 centímetros de altura, o que só aumenta a estranheza com que meu cérebro registra a cena. A cada movimento do bicho (criatura, ser, duende, demônio?) minha pele se arrepia. O medo primordial inunda com seus hormônios e substâncias específicas a corrente sanguínea, que corre pelas veias com a força e velocidade absurdas conferidas por meu coração disparado. Algumas fracas memórias de terrores infantis reivindicam parentesco com essa nova experiência, mas com muito pouco sucesso. Um escorpião enorme que quase me mordeu, uma aranha caranguejeira, até o encontro com uma cobra venenosa no sítio do meu avô não conseguiram provocar nada próximo ao alerta máximo que meus sentidos experimentam agora.

Vejo nitidamente a face do pequeno ser. A pele parece de um cinza escuro, semelhante à de um cão com peladeira que vi um dia desses na rua. Mas diferente da pele agredida e enrugada do cão, é uma pele lisa, esticada sobre pequenos músculos retesados, prontos a saltar sobre mim. Seus olhos pretos como os de um animal, porém dotados de um brilho onde percebem-se propósito e inteligência. A cabeça pequena e redonda, com orelhas grandes, reluzentes e redobradas semelhantes ás de um gambá. O nariz não há, apenas dois orifícios alongados verticalmente, ligeiramente oblíquos, mais próximos na base. A boca, que antes encontrava-se fechada, abre-se nesse exato momento, mostrando uma fileira de dentes brancos, que me lembraram imediatamente os da piranha empalhada que meu avó tinha na estante da sala do sítio. Dentes curtos, rombudos na base, afilados na ponta, dentes de retalhar carne. À mostra agora, em exibição lado a lado num sorriso macabro e selvagem.

Não posso descrever com exatidão a cena que se segue. A criatura pula com destreza da janela para o chão do quarto, e uma eletricidade viva percorre meu corpo, fazendo com que eu me mexa mais rápido do que imaginei ser possível. Viro para a lateral da cama oposta á janela na fração de segundo seguinte, talvez num impulso de alcançar a porta. A criatura já passou por cima da cama, e se atirou sobre mim, como um cachorro pequeno enlouquecido, toda garras e dentes e cuspe e baba, e arranhões. Procuro defender meu rosto, embora sinta que ela me atinge de alguma maneira, estou anestesiado pelo absurdo. Em algum ponto dentro de mim, um instinto selvagem de sobrevivência, uma primitiva natureza animal faz com que eu esqueça de todo o resto e me concentre em agarrar a criatura, e percebo que consegui pegá-lo pela cintura fina, que talvez seja do diâmetro do meu pulso. Começo imediatamente e golpear sua cabeça na quina da perna da cama. Uma, duas, três vezes. Durante o processo, sinto sua fantástica musculatura forçando e toda sua selvageria arranhando, e mordendo, e tentando se libertar, mas ainda assim continuo batendo repetidamente até que ela pare de se mexer. Consigo ver na luz da lua e sinto meu rosto quente e percebo que me feri bastante. Nesse momento percebo que um dos meus olhos parece tampado, mas com o outro vejo o pequeno corpo inerte no chão. Enquanto levanto procuro o rosto e percebo muito sangue nas mãos. Antes de ir ao banheiro um resquício de selvageria faz com que eu pise repetidas vezes no pequeno corpo, e sinta os ossos se quebrando e órgãos estourando à medida que um sangue escuro se espalha pelo chão. Um certo prazer macabro me anestesia e mesmo consciente de meus ferimentos, um sorriso sinistro passa rapidamente por meu rosto. No banheiro, percebo que um dos lados do meu rosto é uma ruína de pele retalhada, lavado de sangue. Procuro uma toalha, tento parar o sangramento e lavar o ferimento. A dor não é tão forte, ainda estou sob o efeito do acontecido, em choque, talvez?

Um pensamento sinistro me vem, e se o bicho ainda estiver vivo? Volto ao quarto e me certifico que o corpo está no mesmo lugar, mas no silêncio da noite, ouço um som semelhante ao que ele emitia da janela, penso se não é meu cérebro pregando uma peça. Vou rápido até a janela, e ao olhar, meu coração finalmente resolve se render. Um mar cinzento de criaturas, cobrindo toda a vizinhança, nos muros, nos telhados nas calçadas. Do meu apartamento de fundos no segundo andar, vejo-os sobre postes, sobre carros, sobre latas de lixo, vejo aqueles milhares e milhares de olhos cintilando a luz da lua e das estrelas e tomado pelo mais profundo desespero, olho pra baixo e percebo um grupo deles escalando agilmente a parede do prédio em direção à minha janela.

A história de Kabaro – Parte 03



Assombrado pela agilidade do velho, que me pegou por baixo das axilas e me ergueu com facilidade, fiquei feliz e aliviado quando ele falou meu nome para toda a tribo ouvir: “Kabaro! Kabaro Camba!”
Também foi motivo de alívio o fato de eu não peidar nenhuma vez durante essa parte da cerimônia. Quando voltávamos pra casa, minha irmã começou a rir e falou baixinho: “Estava fedendo muito, viu?” Rimos bastante, e me lembro de ter ficado feliz. Demorei a dormir naquela noite, contemplando o teto de palha da nossa cabana e repetindo mil vezes em minha mente o meu novo nome, pelo qual eu seria conhecido e lembrado.
Assim, iniciou-se o que seria a minha primeira vida, através da qual eu cresceria forte, me transformaria em um habilíssimo caçador, um respeitado guerreiro, e aprenderia os caminhos da terra. Encontraria uma bela companheira, seria pai de muitos filhos e iniciaria uma grande descendência. A minha inteligência e a minha liderança ajudariam meu povo a se livrar de muitas dificuldades e um dia, eu alcançaria um papel fundamental na sobrevivência de minha gente. Em certa altura de minha vida adulta, enfrentaríamos duas pragas, uma de doença e outra de homens. Para não morrermos nem de uma nem de outra, tivemos que fugir e a minha esperteza e conhecimento seriam fundamentais para esse processo.
Ao termos que abandonar nossa terra, para renascer como uma tribo mais forte em um outro lugar, minha capacidade de manter nosso povo unido e confiante em nosso meio de vida seria recompensado com minha elevação a chefe, do que a princípio era uma tribo, e que com o passar das gerações, viria e se tornar uma nação.
Minha primeira vida começou na dúvida, mas terminou na certeza. Até então jamais o meu povo tinha passado por tão terríveis provações, e até então jamais meu povo tinha precisado tanto de um líder. E quando essa necessidade surgiu, eu assumi essa responsabilidade, não sem receios, não sem temor. Assumi a guarda daquelas pessoas famintas, expulsas de suas terras por agressão, por doença, por fome, por guerra. Como quem toma uma criança pequena e doente nos braços, incerto de sua sobrevivência, eu os acolhi. E a divindade sem nome que me escolheu, e que apenas ao velho curandeiro, meu velho mganga-avô deu a conhecer seu rosto, talvez tenha ajudado em minha missão. Me tornei rei, vivi muitos e muitos anos, lancei minha semente e espalhei meu nome e meus ensinamentos, e numa velhice tranqüila. Assim terminou minha primeira vida.