terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Quando a lama começa a secar...

© Felipe Dana/AP - G1.com
Hoje, a lama que cobre a Região Serrana do Estado do RJ começa a secar. É uma lama fétida. E o cheiro de morte que dali emana não vem dos corpos das vítimas ou dos restos de vidas e lares que foram arrastados. Mais da metade dessa lama é política. A lama que serviu de veículo para as pedras, pedaços de árvores, veio misturada à água da chuva que cai todo verão (desde sempre) na região. Quem vê os nossos governantes fazendo cara de coitadinhos na TV pode até pensar diferente. Podem até pensar que a enxurrada que atingiu velocidades na casa dos 80Km/h, seja fruto apenas de um inclemente desequilíbrio ecológico. Outros podem pensar que as avalanches de água, terra e pedras enormes que destroçaram as vidas de famílias inteiras sejam algum tipo de castigo divino ou sinal de algum tipo de final dos tempos. Poucos imaginam o quanto mais prosaicas e próximas são as razões para que tantas almas tenham se perdido para a catástrofe.

Já tive a oportunidade em outro texto, de falar sobre como vivemos em um estado de máfias. São máfias na política, máfias no mercado imobiliário, máfias nos transportes, máfias de todo tipo. Não seria diferente na bucólica região serrana. O Imperador D. Pedro II já tinha conhecimento, através do Major Júlio Frederico Koeler (executor do planejamento urbanístico de Petrópolis) da necessidade de proteger as matas nas encostas. Estas dependiam da profundidade das raízes das árvores para diminuir a possibilidade de deslizamentos, o que acabava por limitar a área que podia receber construções na geografia típica daquela região. Já se sabia disso no século XIX. Chega a ser escandaloso que hoje, em pleno século XXI, mal cresça um matinho sobre uma área de deslizamento para que comecem a surgir barraquinhos novamente por ali. Há algo de podre no reino do Brasil, Vossa Majestade Imperial.

Entre o início da década de 80 e meados da década de 90, Petrópolis pulou de cerca de 180 mil habitantes para quase o dobro disso em menos de 20 anos. Cito Petrópolis em específico, por ter nascido e vivido na cidade durante todo este período, mas a mesma coisa aconteceu de maneira semelhante em toda a região. Foi neste período em que se iniciou uma política insistente de assentamento de pessoas em comunidades carentes, patrocinada por políticos locais. Era a onda do “cada barraco, um voto”. Conheci pessoas em Petrópolis que moravam em bairros anteriormente agrícolas, que após tantos assentamentos se tornaram favelas, nos moldes das que existem nas maiores capitais brasileiras. Esses mesmos novos moradores, ao ouvir alguém falar mal do político responsável pelo inchaço naquela região, chegavam a brigar com quem levantasse dúvidas ao caráter do tal político. “Doutor Fulano foi quem deu o tijolo para eu construir meu barraco”, cheguei a ouvir uma vez. Assim acontece até hoje. Há políticos que conseguem votos e mais votos prometendo dentaduras a desdentados, mesmo que, simbolicamente entreguem 1 único dente a cada 4 anos. É fácil. Brasileiro não pensa. Brasileiro só reage.

Os mesmos políticos que assentaram muitas pessoas na região a título de criação de currais eleitorais, também possuem seus esquemas com a máfia imobiliária. Tornou-se fácil contornar leis ambientais e conseguir permissões para construir em locais que fariam o velho D. Pedro II arrepiar a barba. A partir do momento em que certas regiões da serra se tornaram destinos turísticos valorizados, a possibilidade de lucros atraiu as varejeiras mafiosas a esse suculento pedaço de carne. O que poderia se chamar de parceria público-privada-profana neste caso foi simples e eficiente. Bairros inteiros foram criados, casas de campo para a classe média-alta e alta, e mais assentamentos de populações menos privilegiadas em torno, afinal os mais ricos precisam de empregados, como sempre. Até que um dia, literalmente a casa caiu. Ou para ser mais exato, foi arrasada, destruída pela enxurrada.

Morreram ricos e pobres, humanos e animais, adultos, jovens, velhos e crianças. E a lama que vimos não é nem de longe a mesma que se vê nas encostas da região. É outro tipo de lama, aquela lama fedorenta, a mesma que cobre o chão de Brasília, a mesma que permanece invisível aos olhos de uns, mas evidente aos olhos de uns poucos. É a lama podre da qual nasce a política nacional. A lama da nossa falta de consciência. A lama do sentimentalismo sem pensamento. A lama da reação sem planejamento. A lama de quem reúne donativos para outros roubarem. A lama de quem tem piedade pelo próximo mas que não tem consciência de que a realidade só melhora com uma mudança de pensamento. E pensamento é o que mais tem feito falta na cabeça do brasileiro. Em especial na do povo do Rio de Janeiro. Em breve, a lama vai secar, a serra lamberá suas feridas, e se voltará a falar em futebol, Big Brothers, novela das 8, e o onipresente pagode com churrasco no fim-de-semana... Pobre população de bovinos, que ora pasta alegremente, ora é obrigada a rolar na lama.