quinta-feira, 26 de maio de 2011

Os Navegantes


Quero um canto sossegado
Nesse mundo acelerado
Onde o tempo passa tanto,
Tão depressa, até voando
Pra sentar, tomar café
Papear com um bom amigo
Pôr em dia alguma fé,
Encontrar algum abrigo
E descobrir como é

Tem horas que é necessário
Parar para respirar
Chutar o quadro de horários
Tem horas de afrontar
O bom gosto, as etiquetas
As exigências e relógios
Apertar pause no planeta
E ver a vida respirar

Nessas horas eu me vejo
Comungado com eu mesmo
Pensando no que quero
No que faço e no que espero
E não penso em mais nada
Nem trabalho ou namorada
Penso apenas que se eu
Não fizer bem para mim
Se eu mesmo fizer a vida ruim,
Que piloto serei eu?

Se meu barco for errante,
Se perdido ou distante,
Não serei só eu culpado,
Pois que ninguém me garante?

Se esse mundo nos cobra tanto,
Vale mais cuidar de si
Pra não naufragarmos em pranto,
Ou afundar por aí.

Apesar disso, bem vindo seja
Quem quiser se juntar à frota
As regras estão na mesa,
Só resta traçarmos a rota.

Publicado no Recanto das Letras em 08/08/2009

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Quando o fato real vira faz-de-conta


Assisti no fim-de-semana o filme Casino Jack, estrelado por Kevin Spacey. A pelícila conta a ascensão e a queda de Jack Abramoff, um lobista de primeira linha em Washington. Ambientado no período moralmente dúbio do governo de George W. Bush, a história acompanha Abramoff e seu assessor mais próximo tomarem a decisão de comer o fruto proibido do lucro fácil através da corrupção pura e simples. Os dois embarcam a partir de certo momento em um perigoso esquema de faturamento milionário, mas com alto risco. Empenhando a reputação e influência ímpares que Jack tinha amealhado em anos de serviço na Capital, os dois se atolam até o pescoço em um esquema envolvendo cassinos, mafiosos e tráfico pesado de influência.

O que mais impressiona ao assistir-se a um filme desse tipo, é o quanto percebe-se que ainda estamos longe de ter uma democracia digna de ser assim chamada aqui pela terra dos tupiniquins. Assistir a uma história como essa, com a ótica de quem já acompanhou casos como o mensalão, por exemplo, é algo quase surreal. É um filme retratando fatos que aconteceram em um dos países mais criticados e ideologicamente combatidos do mundo. Ao mesmo tempo, um filme mostra o quanto o Brasil ainda tem que comer de arroz-e-feijão para se tornar uma nação de verdade. O corrupto americano vai preso, o senador tem medo de ter seu nome mencionado nos jornais. E quando um esquema de corrupção aparece na mídia, é um Deus-nos-acuda. Os principais operadores do esquema se desesperam quando ficam sabendo que "a casa caiu". Completamente diferente da completa serenidade que a impunidade verde-amarela confere aos nossos poderosos da vez.

Aqui, na terra dos multiplicadores de ganhos à base de consultorias mágicas, no reino do faz-de-conta, no mundo maravilhoso das pizzas, nada disso acontece. A maior justificativa para assistir a esse filme, além da boa interpretação de Mr. Spacey, seria a oportunidade de sentir o quanto é peculiar ver um filme baseado em fatos reais se tornar mais fantasioso aos nossos olhos do que o caos institucional completo no qual vivemos mergulhados. O quanto é surreal percebermos que um filme que mostra fatos que de fato, realmente aconteceram, parecerem a nossos pobres olhos verde-amarelos, a mais pura ficção científica. Chega a ser assombroso. Pobre país o nosso.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Esse tal agora


Sinto falta de um certo instinto
Que guia animais primitivos
Se disser que o tenho, minto
Mas não faltam-me motivos

Às vezes fico assim entristecido
Tomado por uma imobilidade
O coração pesado, ombro caído
Uma tristeza com brevidade

Que logo parte, se vai
Mas que está sempre perto
Meu pensar às vezes atrai
Mesmo quando estou certo

Sinto falta de errar demais
De navegar sem mapa e destino
E sem saber como voltar atrás
Com o abandono de um menino
E a firmeza de uma tenaz
Render tributo ao desatino

Ao mesmo tempo, rio do erro
Rio do engano, do desacerto
Da falta de plano, esse desterro
Da não-partitura desse concerto

Gosto de ver os passos pequenos
Gotículas de progresso, estrelas
Possibilidades, as que vemos
E as chances, de percebê-las

Olho o futuro, e evito o medo
E do passado, a melancolia vilã
Pois cá no meu hoje vive o segredo
De não sofrer nem por ontem,
E nem por amanhã.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Loucuras de Amor


Fruto do mundo onírico das artes, da fantasia e do cancioneiro popular, o trecho final da música “Metade” de Oswaldo Montenegro é repetido e reproduzido como um mantra, (em sua grande maioria por mulheres) em perfis de redes sociais e montagens de powerpoints açucarados internet afora. Os versos dizem:

“E que a minha loucura seja perdoada / Porque metade de mim é amor / E a outra metade também.”

Então, voltamos ao mundo real. Nesse nosso cotidiano de violência, os crimes passionais estão se tornando cada vez mais corriqueiros. Talvez venha o tempo em que sequer venderão jornais. Lembrei disso tudo quando pensei nesse crime, o caso Verônica Verone Paiva, em que a moça de 18 anos mata o namorado no motel. Uma coisa puxa outra, e vem à lembrança vários outros crimes recentes, motivados por reações emocionais intensas, desprovidas da menor razão. Qualquer um pode vir argumentar que crime passional sempre existiu, sempre existirá, seja ele perpetrado por homens ou mulheres.

Só que não é esse aspecto da questão criminal que me interessa tratar. Há milhares e milhares de estudos a respeito da forma como a cabeça dos criminosos dá à luz seus resultados infames. No momento atual, e nesse caso em específico, o que me chama a atenção é outro tipo de olhar. Meu interesse sempre perambula pelos arredores desses casos de crimes passionais que aparecem com tanta frequência. Geralmente me interesso em olhar para o que na perifeira do crime, possa oferecer pistas para o que formou a pessoa do assassino (ou assassina). Casos como o da família Richtofen por exemplo, sempre aguçaram esse lado da minha curiosidade e suscitaram perguntas. O que faz uma moça bem-criada, de classe alta, de aparente excelente educação, chegar tão longe na escala criminal? O que deve acontecer durante a vida de um jovem para que as amarras de seus demônios internos se soltem de maneira tão definitiva? Foi esse tipo de questionamento que me veio à mente quando me deparei com o recente crime em Niterói.

Em nossa nova realidade, de novas mídias, de redes sociais e inclusão digital, a expressão do indivíduo é mais clara do que se possa pensar. E a sua responsabilidade, mais fácil de perceber aos olhos dos outros do que se possa imaginar. Essa moça, aos seus 18 anos é uma pessoa nascida nesse novo mundo pós internet. Fruto de um contexto social um tanto distorcido. É bem provável que venha de uma geração de meninas, sejam pobres ou ricas, criadas sendo chamadas de princesas num mundo onde essas não existem. Pelo menos não da forma como a Disney as vende. Muito cedo, é ensinado a essas meninas que suas vontades de consumo devem ser atendidas. Muito cedo, elas aprende que nesse mundo de falsas princesas, de corações, de pseudoencanto e magia fake, o que manda é o coração. São instruídas nesse caminho, de forma irremediavelmente unilateral, por mães zelosamente emocionais e pais desprovidos de qualquer racionalismo ou refinamento crítico. São cercadas de futilidades que mudam apenas de preço, de acordo com a classe social a que suas famílias façam parte.

Ao chegarem à adolescência, com os hormônios em polvorosa e o balanço entre o racional e o emocional já completamente destruído desde a infância, se tornam seres muitas vezes fúteis e invariavelmente consumistas. Professam como religião um mito de amor idealizado e estranho, onde o coração é o símbolo máximo. Algumas carregam essa marca pela vida inteira. Procuram desesperadamente corresponder a padrões de beleza e sensualidade, e as que não trilham os caminhos de uma futilidade fashion mais fundamentalista, acabam por se dedicar de corpo e alma ao culto do coração cor de rosa. Dedicam suas vidas à cata de um amor idealizado, enquanto no caldeirão real que ferve por dentro, outras emoções mais fortes e descontroladas borbulham. Ciúmes, incapacidade de aceitação de perdas, constante desequilíbrio de autoestima, emoções exacerbadas, valores distorcidos. Tudo isso sendo cozinhado há tempos numa panela de pressão que respondendo a algum estímulo externo pode explodir.

Enquanto isso, temos toda uma sociedade construída em torno de conceitos que dizem que “tudo vale a pena por amor”, que “loucuras de amor são lindas”, que “o amor perdoa tudo”, que “tapa de amor não dói”. Temos uma sociedade extremamente hipócrita, onde aceitamos ser agentes de infidelidades, mas jamais as vítimas delas. Onde ainda acreditamos que amar é sofrer. Vivemos em uma sociedade onde as mulheres são estimuladas a serem competitivas e invejosas entre si, a compararem-se à exaustão umas com as outras e a evitarem ao máximo assumir seus erros, sempre tendo uma razão emocional para justificá-los. Nessa nossa realidade, onde as loucuras de amor são tão prezadas e vistas com naturalidade, o que causa estranhamento não são os crimes, mas ainda existirem uns poucos que como eu, se surpreendem quando eles acontecem.

Sim, homens e mulheres cometem crimes passionais. Mas hoje escolhi falar do crime da moça de Niterói. O crime cometido por uma mulher. E quanto à música do Oswaldo, não perdôo sua loucura, senhorita. Pra loucos não se deve bater palmas. Nem mesmo para “loucos de amor”.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Má, Temática

©VinnyPrime

Nunca fui bom em matemática
Minha aritmética, é pouca
A minha voz, já tão rouca
Não pode dar essa aula
Pois que meu coração
É pequeno, ímpar
Talvez, até primo
Não aceita divisão

E o meu coração é estranho
É movido por logaritmos
Mas tem um gostar tamanho,
Uma sede de somar,
Que chega a se multiplicar
Quando o assunto é amar.

Meu coração é a síntese pura
Entre a exatidão de um número
Que aos inexatos tortura
E a incerteza tão bela
Da mais intrincada linguagem
Que mesmo não sendo exata,
É a tinta que compõe a tela
Dessa minha vida abstrata,
Esse mundo mal colorido
Feito de um coração dolorido
E os números de felicidade
E deliciosas estatísticas
Que escorrem entre as físicas
Da minha inexata liberdade.

Minha matemática é torcida,
E minha linguagem é lei,
Se números mudam a vida,
Já o meu destino, não sei.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Pequenos tubos de papel


Saí do trabalho aquele dia numa hora já um pouco passada. Nem tanto para tarde, mas além demais para ser a hora. O escuro já avançava sobre as luzes, que insistiam preguiçosamente acesas. Ainda assim, aquele trecho que eu percorria naquela oportunidade sempre me sugeria um eterno jogo empatado entre as luzes da cidade e as trevas da noite. E à noite, enquanto uns voltavam pra casa, e outros mudavam de lugar, algumas criaturas da noite saíam de suas tocas. E aquela era a hora em que tudo isso se misturava.

Descia a Presidente Vargas desviando de partes molhadas por líquidos que eram tudo menos água. Prestava muita atenção a buracos no calçamento de pedra portuguesa, ou o que era pior, uma das próprias pedras que estivesse solta. Era uma preocupação oportuna, já que tinha eu mesmo torcido o tornozelo tempos atrás, por conta dessa armadilha das calçadas. Bastava que uma pedra estivesse deslocada e solta, com a parte mais lisa virada para baixo, em contato com a parte igualmente lisa de outras que estivessem bem assentadas. Torção, ou tropeço, ou queda, eram todos destinos possíveis ao incauto que passasse por aquele trecho da Presidente Vargas. Um grupo de mulheres muito parecidas passou ruidosamente perto de mim. Mulatas, shorts curtíssimos. Barrigas salientes, laranjas, verdes-limão, jeans, preto, rosa shock, tatuagens péssimas, engrossadas pelo sol. Piercings no umbigo, no nariz, na sombrancelha. Risos, discurso alto, palmas batendo sem aparente razão após uma risada acompanhada de uma inclinação súbita da cabeça para a frente. Pés imundos, metidos em chinelos de plástico colorido e barato, com pequenos laços de plástico nas tiras. Mas as unhas do pé feitas, sem exceção. Uma delas cospe no chão. A mais obesa vira para trás e grita um xingamento para alguém, se real ou imaginário, ignorei. Duas compartilhavam um cigarro.

Parei à espera de uma oportunidade de atravessar a Rio Branco, perto de um carro medianamente luxuoso. Um homem de meia-idade, ainda vestido em seu terno, olhava pela janela do carona com uma expressão que mesclava um profundo desprezo e um ar de poucos amigos. Parecia alguém que tinha acabado de sofrer um enfarte, e aguardava impaciente pelo próximo. Numa das mãos, a que cutucava distraídamente com o polegar no espelho retrovisor, um cigarro aceso entre dois dedos apontava para cima. Atravessei quando um dos sinais fechou. Corri um pouco para evitar um táxi que passou na virada do amarelo pro vermelho. Provavelmente já no vermelho.

Caminhei pela calçada que margeava a Candelária pelo outro lado da rua, alguns passos ao lado de um casal estranho. A mulher tinha um corpo magro e se vestia com roupas que disfarçavam um pouco seus cansados 50 e tantos. O homem que lhe segurava uma das mãos parecia um nerd envelhecido, metido numa combinação de calça jeans, camisa social e botas que ficariam sem dúvida melhores em alguém com metade de sua idade, ou ao menos com uma postura melhor. Apesar de ter cabelos compridos até os ombros e displicentemente desalinhados, presos com um arco, possuía um rosto pálido, envelhecido e de aparência bem pouco saudável, que era complementada perfeitamente por sua forma curvada de andar. Apesar de falar num tom de voz baixo, parecia estar imerso em profundo aborrecimento e contrariedade, e que dirigia toda essa carga, tão negativa quando sua expressão a algum assunto que conversava com sua equivocada companheira. Ela, com o rosto a transparecer um indizível cansaço de vida, trazia na mão livre um cigarro.

Passando o ponto de ônibus, mas continuando na mesma calçada, já me encontrava próximo à esquina com a primeiro de março. Veio em minha direção uma moça jovem, em roupas de trabalho. Morena, cabelos bonitos, com movimentos limitados por uma redondice extrema que tornava seu rosto de outra forma bonito, em uma caricatura redonda. Seus pés, em chinelos que provavelmente usava após sair do trabalho, tinham os dedos espalhados e curvos, como porquinhos querendo fugir de um matadouro imaginário, correndo um em cada direção. Tinha um semblante extremamente cansado, e interrompeu o movimento de remada dos braços curtinhos umas duas vezes para tragar o cigarro que fumava.

Chegando à primeiro de março, me surpreendi com a frequência assustadora com a qual cruzava com pessoas como essa dupla que agora cruzava meu caminho. Sempre ali naquele trecho, sempre via muitas pessoas que me causavam estranheza, por serem tão iguais no desespero que partilhavam invariavelmente: parecerem alternativos, sempre de uma maneira quase industrial. O rapaz, claramente gay, vestido de forma irremediavelmente ridícula, tentando de forma heróica manter no rosto um ar de extrema auto-importância, e uma moça vestida de forma igualmente ridícula, mas com cores que berravam de outra forma ao mesmo tempo em que contrastavam com seu ar estudadamente alheio, quase como alguém que ocupa um corpo e respira oxigênio porque não tem nada melhor para fazer. O rapaz puxa dois cigarros de uma embalagem e passa um deles pra moça. Pouco após passar por eles, um dos sinais da rua fecha e vejo meu ônibus parar. O motorista abre a porta quando faço o sinal, e subo imerso em felicidade por ser proibido fumar no ônibus.

Não era minha intenção, mas naquele momento, conseguia apenas sentir um intenso ódio por aqueles tubos idiotas de papel. E de certa forma, uma vontade de ficar distante de todos aqueles candidatos a zumbi que usam toda a força de um simples vício para tentar justificar com milhares de argumentos, a simples fraqueza que os impede de admitir que não conseguem ficar sem aquela pequena porção diária de veneno para ratos que evoluíram do macaco.