segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

E as cinzas vieram antes...

© Gabriel de Paiva/O Globo
Aconteceu em uma segunda-feira de verão. Uma segunda-feira quente, muito quente. Trânsito truncado, época de volta às aulas. Primeira semana de fevereiro. No clima agradável que descrevo, outro fator que desde criança sempre me causou um certo desconforto já se anuncia. O carnaval está aí, batendo à porta. Assim aconteceu uma estranha coincidência. Uma semana antes eu pensei justamente no assunto geral dessa postagem: o carnaval carioca ser o símbolo do que o Estado do Rio se tornou. O carnaval, assim como o Estado, ser uma colagem amadora de interpretações, tocada por um povo que levou o termo “trabalhar à moda boi” ao ápice da exatidão, e com uma máfia qualquer exercendo poderes de decisão por trás das cortinas do espetáculo.

Já adulto, tentei mapear a origem de meu desgosto com a festa mais popular do Rio de Janeiro, e da maioria absoluta do Brasil. Lembro de na infância detestar os mascarados. Era medo também, medo primal de criança, mas mesclado a isso havia o ódio. Eu me lembro de ouvir minha mãe dizer que eram apenas mascarados, apenas garotos maiores fantasiados, mas não sentia assim. Na minha cabeça era como se fossem criaturas que renunciaram à sua forma humana para se tornar outra coisa. E ao se tornarem essa outra coisa, faziam com que eu me sentisse no direito de odiá-los a ponto de querer suprimir sua existência. Estranho e complexo isso, mais ainda talvez pra uma criança de quatro anos. Mas era o que eu sentia, vou fazer o que?

Mais tarde, veio o incômodo com a obrigatoriedade. Era uma semana onde se ouvia apenas um tipo de música no rádio. Tudo bem que fui criado na frente da TV, mas meus pais eram da época do rádio. Ouvi muito rádio quando criança. E na televisão, a coisa não era muito melhor. Os horários da programação mudavam. Eu encarava aquela coisa estranha a que chamavam de carnaval como um invasor que mudava de forma compulsória a minha rotina. E me impedia de fazer e ouvir coisas de que eu gostava. Na minha semi-roça infantil, a gente não tinha casa de praia pra escapar. Então, a minha revolta era mais do que justificada naquele período. Pelo menos enquanto eu ainda morava numa vizinhança em que não tinha uma criançada da minha idade. Depois disso, minha vivência de carnaval acabou tomando o rumo da pré-adolescência, onde o ápice da diversão era “jogar água nos carros”. Ficávamos na porta da vila, armados de bisnagas de lança-perfume (o de água, não aquele outro que era fácil de comprar no Paraguai), com as quais molhávamos a janela dos incautos que passavam na nossa rua. Uma vez ou outra dávamos sorte e conseguíamos molhar alguém de fato... E quando o cidadão parava o carro e fazia menção de nos perseguir? Cara, isso era o máximo da adrenalina infantil interiorana. Esporte radical de moleque morador do centro da cidade. Perdões, mas ninguém é perfeito.

Pulei a adolescência no que diz respeito a carnaval, porque aí eu já tinha descoberto que o gene folião não fazia parte do meu DNA. E já naquela época eu era meio avesso a gostar do mesmo que todo mundo, a querer ser muito igual, e coisas do tipo. Acabava procurando opção para aproveitar o tempo jogando bola ou fazendo algum dos passeios ou viagens que as amizades da época volta e meia proporcionavam. E vinham as primeiras saídas, aprender a beber, e as paqueras, e as festinhas, e nada disso tinha a ver com carnaval pra mim.

Cheguei à idade adulta, vim mais pra perto da metrópole e também do carnaval. Passei a ver o carnaval com mais senso crítico que tinha antes. Comecei a retornar ao sentimento primordial da infância e descobri que o que me incomodava não era o carnaval em si, mas o ter que engolir de forma tão compulsória o paticundum prugurundum como se quem não gostasse disso bom sujeito não fosse, tivesse problemas da cabeça ou alguma impedimento ortopédico. E comecei a olhar de outra forma para o famoso carnaval do Rio, tão famoso e tão magnético para turistas e todo um universo de pessoas. Comecei a ver o “maior espetáculo da terra” como um circo que curiosamente, é tão incompetente quanto fascinante. Não lembro de sequer um desfile das escolas do grupo principal onde não tenha acontecido algum problema com algum carro, alegoria ou em que alguma escola não tenha se levantado em fúria por ter se achado preterida ou injustiçada em algum momento.

Vejo as figuras de proa da administração carnavalesca, os donos das escolas, os presidentes das ligas, os carnavalescos, e fico abismado como se consegue sequer montar um desfile com figuras como essas comandando o show. Há que se ter muito dinheiro para cobrir os buracos. E no fim, meu pensamento retorna ao dia de hoje, à gigantesca coluna de fumaça que subia da cidade do samba. Pensei, com um desde já admitido grau de crueldade, que era benfeito. Me sinto cansado de ver coisas importantes, mesmo que não pra mim, mas para muita gente, serem administradas com incompetência, por máfias, por capitães, por bicheiros, por bandidos. Cansa ver todo ano ser elevado ao status de maior show da terra uma atividade mal profissionalizada, pós-artesanal, que recebe dinheiro de todos os lados, mas que ainda assim permanece ano após ano incapaz de colocar todas as suas alegorias na rua. Estou sendo duro? Acontece com qualquer show? Pode até ser, mas se fosse assim na Broadway aquilo lá já teria falido há muito tempo. Pegou fogo? Benfeito. Só gostaria que no trabalho de rescaldo, os bombeiros encontrassem um ou outro bicheiro ou presidente de escola de samba, irremediavelmente queimado junto com seus pensamentos e filosofias.