quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Nossa Senhora dos Cachorros

Hécate, por William BlakeAquarela1795Tate GalleryLondres.
Hoje me voltou à mente uma lembrança antiga. Fragmentos de um passado que já vai ficando distante. Era uma outra época, com outras cores e atmosfera distinta. E mais peculiar ainda é pensar na diferença do que sabia eu criança na última vez em que a vi, e o que sei hoje, adulto ao lembrar da sua imagem. Muitos a chamavam Maria-dos-Cachorros, outros de Velha-do-Cobertor, e ainda outras alcunhas menos frequentes. Mas quem era aquela pobre alma?

Andava pelas ruas, maltrapilha. Atrás de si, uma matilha de cães de rua a acompanhar. Roupas sempre em trapos, invariavelmente cinzentas. Um cobertor também cinza na cabeça, que em minha infância de garoto católico, me sugeria em sua imagem uma versão sem-teto de Nossa Senhora. Se fosse nos dias de hoje, facilmente poderia chamá-la de “Virgem Maria de Tim Burton” ou algo que o valha. Já sua comitiva de cães variava em número de época pra época, de três ou quatro até uns dez, onze. Ninguém sabia seu nome, nem local de nascimento, nem de que família poderia ter vindo. As histórias que se contavam a seu respeito eram tão fantasiosas quanto dignas de pouco crédito. De concreto mesmo, apenas sua perturbação mental, que não era lá das piores, visto que não era pessoa violenta, nem tampouco dada a alterações ou rompantes. Quando era deixada em paz, aparentava estar sempre com um jeito contente na companhia de seus amigos de quatro patas.

Quem a observasse um pouco mais percebia que naquela cidade, de forte imigração alemã, era bem provável ser essa sua origem familiar. Era alta, apesar de talvez pela natureza de sua condição, talvez pela dureza de sua vida de moradora de rua, andar com postura bastante curvada. Ou quem sabe fosse o costume adquirido de tanto se curvar para brincar com seus eternos companheiros? Seu rosto, além de bastante marcado pela vida dura, ainda trazia aqueles traços brutos e muitas vezes angulosos comuns a muitas famílias de camponeses pobres que chegaram por lá vindos da Europa no século anterior. Andava sempre de cabeça raspada, coisa que alguém providenciava que fosse feito de tempos em tempos, talvez num abrigo da prefeitura ou em alguma instituição de caridade por onde passasse atrás de comida. Provavelmente sofreria com piolhos caso não raspasse. Falava muito pouco, e articulava mal as palavras. Com certa pena lembro-me de ter ouvido sua voz com mais frequência ao responder com xingamentos às brincadeiras que alguns garotos lhe dirigiam, do que nas raras vezes em que passava perto e a percebi conversando amorosamente e de modo tão familiar com algum de seus amigos caninos.

Já li em algum lugar que as divindades que o homem cultuou no passado, à medida que perdem fiéis entre os povos que creem nelas, perdem também seu poder. Acabam se tornando sombras do que foram no passado. E hoje, ao lembrar da pobre mulher dos cachorros, não tive como escapar da lembrança da deusa grega Hécate. A deusa que enviava aos homens os terrores noturnos, as aparições de espectros e fantasmas. Também era venerada como regente de caminhos ocultos e tida como filha da escuridão da noite, por onde andava com sua própria matilha de espíritos caninos. Regia as encruzilhadas, invisível aos olhos dos homens. Nas suas andanças por nosso mundo, assim como a dona dos cachorros em minha infância, passava incógnita entre os senhores de bem. Apenas os cachorros a enxergavam. Contam as tradições que nas noites de lua nova, enquanto passava, os cães latiam para prestar-lhe respeito e saudação.

Depois de tanto tempo de passada a época em que tinha seguidores e crentes, Hécate não teria terminado seus dias como uma pobre moradora de rua, meio louca, mas incondicionalmente protegida, amparada e acompanhada por seus amigos de quatro patas? Afinal, depois de cerca de vinte e cinco séculos, foram eles os únicos fiéis que provaram ser continuamente dignos de seus carinhos . Não é à toa que duas coisas me parecem muito claras hoje em dia, mesmo após tanto tempo ter passado, e eu ser apenas uma criança na época. Uma é como os panos cinzentos, o cobertor na cabeça inclusive, estranhamente combinavam com sua mal ajambrada figura. E outra, por mais que ela fosse considerada uma louca ou deficiente mental, ao conversar com seus únicos amigos, exibia uma serenidade e firmeza na voz que eram inexistentes quando se dirigia a algum de nós, simples mortais. Quem sabe não é assim que terminem as divindades esquecidas... Vagando por aí sem poder e sem glória, mas ainda assim envoltos em mistério.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Tribal falando do Primitivo

Hoje estava eu a caminho do trabalho, passei pelo famoso e ao mesmo tempo famigerado mercadão da Uruguaiana. Volta e meia eu passo por ali dependendo do transporte que eu pegue para ir pro trabalho, acaba sendo um caminho costumeiro.

Me chamou atenção um fato. Dia desses num fórum onde participo apareceu uma discussão meio filosófica a respeito de religião, e coisas associadas. Em certo ponto do debate, alguém utilizou para defender uma corrente protestante que seguia um exemplo onde afirmava que religiões afro-brasileiras são tratadas como "manifestações culturais" enquanto que os protestantes de sua denominação são execrados pelos seus cultos. A pessoa insistia no teor, digamos tribal das religiões afro-brasileiras, na questão do sacrifício de animais, na magia negra e sugeria até a questão de morte de pessoas em rituais. A questão seguiu adiante no tópico do fórum, mas algo que vi a caminho do serviço hoje me fez voltar a pensar no assunto.

Em uma daquelas barracas de crenteware do mercadão, uma TV de LCD instalada de frente pra rua passava um DVD. Digo que fiquei tão espantado com o que vi, que não me lembrei de procurar saber o nome da cantora, ou pastora, ou seja lá qual fosse a função da moça do vídeo. O clipe que assisti retratava um momento em um show em que o auge da coisa acontecia, o que eu conheço lá dos primórdios da minha educação religiosa como talvez "receber o espírito santo", ou qualquer que seja o nome que eles dêem a isso em sua seita. Mas não foi esse o ponto que chamou minha atenção. A forma com que isso acontecia, e a forma como a moça se comportava, como conduzia a cerimônia e colocava a voz, era tão semelhante a uma possessão, a um ritual primitivo, que se suprimissem os termos específicos da religião, aquilo poderia ser interpretado da mesma forma que uma possessão em uma religião afro-brasileira, ou qualquer outra forma de transe tribal de religiões consideradas pagãs ou primitivas.

Me causou espanto o paradoxo de que, alguns religiosos se achem mais certos que outros, façam uma campanha incessante para difamar uma outra religião, dediquem tempo em cultos e programas de tv para tentar arrebanhar fiéis advindos de outras igrejas, mas ironicamente tenham práticas e ritos tão semelhantes. Digamos que tive meu momento de pensar "Dancem macacos, Dancem"

sábado, 14 de agosto de 2010

O nome dela é Caro... Caro Emerald.

Hoje eu vim falar de mais uma feliz novidade que eu encontro através das rádios online. Depois que Amy Winehouse apareceu, comecei a prestar mais atenção em cantoras desse estilo que iam aparecendo, mas por conta de uma diferença de estilo aqui, de uma voz mais comunzinha ali, ou de uma roupagem pop demais acolá, nem todas as candidatas a "Nova Amy" realmente me animaram.

Tiro aí como exceções a Duffy porque realmente tem swing, tem uma voz diferenciada e um jeito igualmente diferenciado de cantar, não tentando ser "outra Amy". Confesso que contribuiu e muito para que eu gostasse dela a beleza loira não-óbvia, e a excelente interpretação que ela fez pra "Cry to Me" de Solomon Burke. Me ganhou definitivamente nessa. Mas o CD de estréia dela não é nem tão bom assim... Tira-se lá umas 3 ou 4 faixas dignas de nota, e pronto. Mas fico de olho, porque potencial a moça tem.

Tem também a ítalo-australiana Gabriella Cilmi, que apesar de estar aparentemente guinando para a vida fácil do pop, ainda conta com minha admiração por ter uma bela voz, uma presença interessantíssima e não-óbvia, e um CD de estréia com boas músicas. Ainda tem bastante munição pra queimar, só espero que ela dê os passos certos na carreira. Se cair de vez no pop, será uma pena.

Mas...eu vim mesmo pra falar de outra moça. O nome dela é Caro Emerald, nome artístico de Caroline Esmeralda van der Leeuw, holandesa de Amsterdam, cantora profissional, professora de canto, formada em jazz pelo Conservatório de Música de Amsterdam. Em suma, a moça SABE cantar. E não para por aí, a moça é realmente especial. Tem presença,tem voz,tem técnica e não é uma dessas modelos que vagabundo faz cantar. Ela é fora do padrão. Talvez por isso eu ainda a ache mais bonita e mais interessante que a mesmice de cantoras que são lançadas no mercado atualmente. Ela foge do óbvio.

E a fusão de retrô com moderno que ela coloca em suas músicas? O tempero 40's semelhante ao que as Puppini Sisters usam em suas músicas está lá, mas com uma fusão mais esperta e moderna com as batidas atuas, em algumas vezes até consumível em uma pista de dança, ou no mínimo um lounge bem feito. A banda que a acompanha também é digna de nota, instrumentistas de primeira, afinados, do tipo que parece tocar com divertido prazer. Nesse ponto, a produção acertou em cheio no mesmo alvo que Mark Ronson já tinha acertado com a quase-morta Amy. Bom, chega de papo... vou deixar um vídeo da Caro aqui... quem gostar, pesquise mais porque vale. Caro Emerald, esse é o nome.