terça-feira, 30 de novembro de 2010

Turista Acidental

"Wanderer Above Mists" - Caspar D. Friedrich

É tão claro
Quanto me parece?
Ou estarei iludido
Ao ver tua prece?
Serei o mais acertado?
Terei eu despertado?
Achado rumo, ou ainda,
Me posto no prumo?

Se enquanto fico,
Me apoio no chão
E viajo em mim
Em meu coração
Vejo vocês voarem
Irem, e livres voltarem
E ainda assim choram
E em mim se demoram.
 
Qual o sentido
do livre voar?
Tamanho é o desejo
de ao sol viajar?
Será que a ti mesmo queres achar?
Achas que irás te encontrar?
No ar, ou no mar, a si mesmo
Se no teu próprio pensar
No teu navegar a esmo?

De que te adianta
Pôr o mundo a girar?
Numa ilha distante
Por um tempo morar?
Nas asas do vento
Fugir, se elevar
Enquanto em teu peito
Bate aquele lugar?
Que você não conhece
Que você não visita
Te adormece e mata
E a procura suscita
A viagem mais bela
O lugar mais secreto
Tu tens medo de ir
Tomas por tão incerto

Que te adianta rodar o globo
Procurando um abrigo
Se em teu próprio olhar bobo
Estás perdido, ó amigo?
Que te adianta procurar
Voando ou singrando mar
Se em dentro de ti
Existe o único país
No qual não te atreves pisar?

(Publicado no Recanto das Letras em 21/12/2005)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Love Is a Junkyard Dog

 "Serena" foto de José Reynaldo da Fonseca

Imagine que o amor e a paixão são cães. Imagine que são dois tipos bem diferentes de pulguentos, e partindo desse pressuposto você vai ter algo como o que eu descrevo a seguir.

A Paixão é aquela criatura que você vê um dia, passando em frente a uma pet shop, a te olhar com aqueles olhos brilhantes. Irresistíveis, simplesmente irresistíveis. Você entra hipnotizado na pet shop, disposto a pagar qualquer preço pra levar aquele bicho pra sua casa. Mesmo que o limite do seu cartão vá pra casa do cacete. Mesmo que você saiba que é uma compra impulsiva e que isso vá te gerar custos adicionais. Você compra. Compra com prazer. E vai pra casa, todo feliz, com a criaturinha no colo, a te lamber a cara. Só que você nem repara que junto com a criatura, vai um monte de bugigangas, remédios, coleiras anti-pulgas, vermífugos, ossos de borracha e afins. Afinal, a Paixão é de raça, tem pedigree e requer cuidados mais do que especiais.

Passa o tempo. Você olha pra Paixão e vê que ela não é mais aquela mesma criaturinha engraçadinha que você viu na vitrine da loja naquele dia. Você não admite de pronto, mas no fundo você sabe que a Paixão te dá mais trabalho do que você esperava. É muito banho, é muita tosa, é muito remedinho. Uma hora é uma doença estranha, outra hora a Paixão tá estressada. Você trata ela bem, como sempre, mas parece que quanto mais você trata bem, mais merdas a paixão faz na tua casa.

Um dia você chega e descobre que a Paixão destruiu todas as tuas almofadas. Mastigou metade dos teus CDs. Engoliu o pen drive onde estava aquele trabalho que você fez durante um mês, e que por obra de São Murphy, só tinha backup até semana passada. Você começa a ficar meio decepcionado com a Paixão. Você não entende como uma criatura que você trouxe da pet shop com tanto carinho, pra quem você deu do bom e do melhor, se comporta daquela forma. Você deu a ela toda a atenção que se poderia esperar, todos os acessórios necessários para o bem estar da Paixão estavam lá... Mesmo que isso significasse que você tinha que comer pão com salsicha o resto do mês. Mas nada disso a satisfazia. Até que um dia ela se irrita sabe-se lá com que, e te morde. É, isso mesmo. Te morde. Mete os dentes na tua carne, arranca um pouco de sangue. Você olha pra ela e não a reconhece mais. Aquela criatura com olhos brilhantes que você viu na pet shop no que parece ser um dia há muito, muito tempo atrás não faz mais parte do quadro que aparece na sua frente. Você vê apenas uma criatura estranha, com os dentes arreganhados, estranhamente hostil, rosnando baixinho pra você. Como se você fosse um inimigo. Nesse momento, você simplesmente pega o telefone e começa a tentar arrumar alguém que queira ficar com a Paixão, porque com você não dá mais. Você sabe que se fosse uma pessoa um pouco mais cruel, consideraria chumbinho, mas esse não é o caso. Você quer vida, e de violência, basta o sangue que está escorrendo da sua mão.

Já o Amor, bem... Esse é outro caso. Normalmente, muita gente confunde a Paixão com ele. Muita gente mesmo. Em grande parte, é por culpa desse confundir é que existe muita desilusão nesse mundo. Muita gente boa, famosa, rica, poderosa e importante confunde, não é privilégio dos pequenos, pobres e desconhecidos. Mas o Amor, o verdadeiro, é muito particular. Ele é um vira-latas... Daquele tipo mais sem-vergonha, que pode passar ao seu lado várias vezes num mesmo dia sem que você ao menos dê por ele. O Amor é silencioso também... ele vagueia pelas ruas da cidade, normalmente de cabecinha baixa, procurando uma lata de onde tirar algo que comer. Ultimamente, ele anda magro, porque tem sido muito pouco alimentado. Às vezes, o pelo está meio sujinho... Uma vez ou outra ele aparece ferido, a despeito dos vira-latas serem forjados nas ruas como os mais resistentes guerreiros, que já nascem lutando pela vida, que como eu tenho o costume de dizer, é "feia, dura, e muito boa de porrada".

Então você vai vivendo sua vida. Nem lembra que o amor existe. Um dia ele aparece na frente da porta da sua casa. Muitas vezes, você não vai levar fé que ele é quem você pensa que é. Aquela coisa, pêlo sujo, olhar sofrido, cara de quem já viu dias muito melhores. Mas no olhar dele, em vez do brilho da paixão, você percebe alguma coisa mais profunda. Não dá pra dizer imediatamente o que é, você só sabe que é algo familiar. Na dúvida você acolhe o Amor. Os dias vão passando, e você aproveita os produtos que sobraram do período em que a Paixão estava na sua casa, dá um belo banho nele. Dá uma ração legal pra ele, e assim, meio discretamente você percebe que o danado do vira-latas mudou. Nem parece aquela figurinha estranha que parou na sua porta. Parece que ele adivinha o que você quer, ou o que você pensa. Você sai pra trabalhar, quando volta, ele não aprontou bagunça na casa. Só pula no teu colo e faz uma festa danada. E você começa a se sentir bem quando chega em casa, mesmo que seu dia tenha sido uma merda, mesmo que aquele contrato não tenha sido fechado e que você tenha tido que aturar o mau humor do seu gerente o dia inteiro. Alguma coisa começa a mudar dentro de você quando você pensa no pulguento.

Cada vez que você chega em casa e ele vem te receber com alegria, cada vez que você está de saco cheio com a vida, e ele vem e fica do seu lado no sofá e só deita a cabeça no seu colo com aquele olhar de quem entende tudo, você começa a lembrar do dia que olhou dentro dos olhos do Amor pela primeira vez, e começa a tentar descobrir porque ele te pareceu tão familiar. Você olha pra ele, o pelo bonito, aquela língua pendurada que faz ele parecer estar rindo pra você, aquela coleira supercara que convenhamos, fica muito mais bonita nele do que ficava na Paixão... De repente você começa a lembrar. Um dia quando você era bem criança, você teve um outro desses. Era vira-latas também. Mas era a coisa mais importante da tua vida. Era um Amor também. E você vivia num mundo em que Amor era a única linguagem que você entendia. Por isso que mesmo depois de todas as porradas que a vida te deu (e ainda vai dar, pode ter certeza), mesmo você quase tendo esquecido dele, quando você olhou pros olhos dele lá na frente da tua porta, com o pelo sujo e aparência de quem já viu dias melhores, ainda assim você sabia que já tinha visto aquele olhar antes... Não era o brilho da paixão, que um dia se transformou (como está destinado a sempre se transformar) em um nada. Era o reconhecimento do Amor, aquele vira-lata que você conhece, que te acompanhou e ficava perto de você quando você ainda estava aprendendo a andar, só pro caso de você se desequilibrar ele não deixar você cair e se machucar. Aquele mesmo, que ficava tomando conta de você no quintal, o próprio, que enfrentou aquele rottweiler pra te proteger, ficou todo machucado mas botou a fera pra correr. E você, olha pro safado do seu lado no sofá, e entende porque ele está ali, o que trouxe ele até a sua porta. O nome dele é Amor, e o papel dele é estar perto de alguém que como você consiga passar pelas aparências e pet shops da vida, e aprenda a ter olhos para ver. É só o que é necessário, porque como eu disse antes, ele passa pela gente todos os dias pelas ruas afora, mas nem todo mundo o enxerga quando ele está ali na nossa porta. Olhos para ver.

(Publicado no Recanto das Letras em 23/05/2007)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Não Sou Difícil de Entender


Eu não sou uma pessoa difícil de entender. Por mais complexos que sejam meus processos, ou por mais herméticos que pareçam meus pensamentos, eu tenho sim um manual de instruções. Ele tem umas oitocentas e trinta e três páginas, mas acredite, está tudo lá. Meu temperamento é tranqüilo, e até mesmo os dois irmãos gêmeos (tão diferentes em gênio) que compõem a minha alma concordam em ser tranqüilos na maior parte do tempo. Mesmo um deles sendo agitado e ansioso, e o outro sendo calmo e ponderado, ambos acreditam que quem está de fora não precisa, salvo raras exceções, seguir o ritmo das suas eternas trocas de lugar.

E eu sonho. Mas sonho pouco, em momentos especiais. Pra mim sonhar é algo feito por prazer, não por necessidade ou impulso. Meus sonhos são sempre bem destacados da realidade. Mundos à parte. E não gosto de misturar sonho com realidade, por achar que sonho serve pra inspirar, e não para iludir. Serve de ideal, é fonte de maravilha, e não uma rota de escape ou refúgio para fracos. Porque eu vivo mesmo é na realidade. E a realidade é na grande maioria das vezes dura, feia, e boa de porrada. Só o uso competente do material do sonho é capaz de amolecer, acalmar e embelezar um pouco a realidade. E eu não vou viver sonhando acordado, pois a vida bate mais forte em quem se distrai com fadinhas.

Eu acredito em ciclos de energias, acredito em vibrações, acredito em eletricidade, em química, em dimensões, e em coisas que ainda somos incapazes de entender. Acredito que damos nomes errados a algumas coisas. Acredito que damos mais valor a esses nomes errados do que à busca por conhecer os nomes certos. Acredito que se mata e se morre por nomes, por meros nomes que damos a energias que não entendemos. Por isso, me desfiz dos nomes. Olho com desconfiança quem dá nome pra tudo, e se arvora a saber todas as respostas. Prefiro me concentrar em minhas próprias perguntas. Elas já são mais que suficientes para esta vida.

E eu vejo, e eu sinto, e eu sigo navegando nesse mundo tão estranho. Há quem pense que eu vejo muito, há quem pense que eu sinto pouco, há quem ache que eu devia navegar por outras águas. Mas cada vez que eu sinto vontade de escrever, acontece a minha redenção. É o momento em que mostro que vejo o necessário, que sinto na exata medida, e que navego nas águas dessa corredeira que o meu destino deitou diante de mim. Ora cascateando por entre as mais mortíferas pedras, ora placidamente banhando as mais belas margens, mas sempre, sempre em direção àquele quente litoral que eu vislumbro nas horas em que sonho.