sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Aprendendo e Vivendo VI - Parte 02

©sxc.hu


Miguel se olha no espelho do elevador. Se acha um pouco mais gordo, um pouco mais desajeitado que a imagem de si que carrega na memória mais recente. Do elevador antigo mas bem conservado de prédio antigo e igualmente bem conservado, já consegue sentir o aroma da casa de Alice. Um cheiro que lembra certas casas de sua infância. Cheiro de casa de classe, cheiro de coisas antigas e de matérias nobres. Mas a presença de Alice naquele apartamento (que herdou da mãe falecida) também contribui para os aromas. O cheiro de coisas importadas, coisas novas e coloridas, e coisas não tão novas mas em excelente estado. Alice espera na porta da sala assim que o elevador se abre. Os dois se abraçam com certa cerimônia. Ela tem aquele olhar de quem não quer ouvir palavras. Um olhar de quem não dormiu bem, de quem não está com paciência, um olhar de quem tem o que reclamar da vida. Mesmo aquele momento em que as mãos de Miguel escorregam para a bela curva da cintura de Alice, ele não sente o mesmo entusiasmo de meses atrás.
Alice, dez anos mais velha que ele “melhor que muita menina aí” – pensa seu inconsciente, porém muito mais cheia de questões que qualquer uma que você tenha conhecido, grita sua consciência, da boca de cena daquele pequeno teatro. Um namoro improvável, que começou mutuamente entusiasmado e brincante, resgatando uma juventude que era incomum até para Miguel, o mais novo dos dois. Alice cujo olhar silencioso e quase molhado o recebia em seu apartamento, naquele abraço gostoso que levava suas mãos até a curva da cintura automaticamente, e que fazia com que a trouxesse para junto de si num beijo sincero e alegre. E o silêncio continuado daquele jeito dela descansar o rosto em seu peito como se fosse uma adolescente e não uma bela mulher de trinta e oito anos.
Hoje, Miguel pensava com certa nostalgia daquele tempo tão próximo e ao mesmo tempo tão distante, separado por séculos de desgaste, causado pelas excessivas crises de melancolia e instabilidades do humor de Alice. O olhar que antes comunicava doçura, hoje cada vez mais apenas fazia com que ele sentisse certa vontade de se afastar dali. A mente elaborando planos de fuga, meios de se safar daquela relação sem que ninguém percebesse, nem ele mesmo se possível.
Às vezes se flagrava demorando na livraria próxima à casa dela, protelando um pouco sua chegada. Era uma forma de distrair seu pensamento e absorver coisas das quais poderia talvez lembrar num dos momentos de melancolia onde ela se demoraria reclamando de coisas das quais gostava até a semana anterior. E que talvez voltaria a gostar na seguinte. E se o sexo ainda era algo que considerava bom, creditava isso muito mais a seu tesão físico, por detalhes de Alice que tanto lhe agradavam, do que por um envolvimento emocional que colaborasse para seu prazer ao lado dela. Com o passar do tempo , aquela melancolia estranha de Alice começou a criar uma exasperação simbólica dentro dele. Não que de fato sentisse vontade de brigar ou algo parecido. Não que sentisse vontade de sacudi-la de fato. Mas a sensação sublimada de tudo aquilo preso dentro de si o fazia sentir uma vontade cada vez maior de ir embora. De deixar Alice para trás, de não ter que a encontrar mais, de não ter que ouvir seus assuntos cada vez mais fúteis, de não ter que participar de conversas vazias sobre coisas boas do primeiro mundo, sobre marcas boas de lá de fora em comparação com marcas boas daqui.
Agora, ali na entrada do apartamento, Miguel esperava simbolicamente a roda da fortuna imaginária girar para saber o resultado de hoje. Seria premiado com uma noite em que a disposição de Alice estaria boa, o humor agradável e o sorriso viria fácil? Ou a roda pararia num espaço reservado para os cada vez mais frequentes períodos de reclamações da vida, de melancolia com pouca justificativa e de pouca ou nenhuma disposição para o sexo, ou ao menos para o carinho entre namorados que eram? Entrou no apartamento, e suspenso sobre a porta, um suspiro da mais pura falta de paciência com tudo aquilo. Naquela noite conversariam, e no dia seguinte, sairia pela porta daquele apartamento pela última vez.